Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O jornalismo e suas dimensões possíveis

A massa de informações produzida diariamente pela mídia permite aos indivíduos e à sociedade ampliar o conhecimento do tempo presente. Sem esse conhecimento, o presente seria encolhido e pobre, limitado às esferas familiares, aos vizinhos mais próximos e ao ambiente de trabalho. O que ocorre em Beslan ou Bagdá pode ser compartilhado por um habitante do Rio de Janeiro ou São Paulo. O conhecimento simultâneo desses presentes imediatos resulta numa repartição de saberes, da experiência humana, ampliando a visão de mundo dos indivíduos.

Cabe ao profissional da informação recolher pelo mundo afora uma infinitude de informações e, numa linguagem acessível, levá-las ao consumo da sociedade, alargando o seu tempo presente, permitindo que as pessoas tenham acesso a um todo produzido por áreas distintas do conhecimento. Num breve espaço de 24 horas, o jornalismo é capaz de potencializar informações num ritmo maior do que há 20 ou 30 anos, graças às novas tecnologias, propiciando a noção simultânea de diversas realidades.

O jornalismo, ‘ao juntar conhecimentos, ainda que mais superficiais, do conjunto de campos de conhecimento como física, matemática, biotecnologia, antropologia, sociologia, economia, faz com que os indivíduos possam potencialmente ter acesso a essas áreas, e com isso se incorpora no indivíduo uma aceleração dos processos mais imediatos de informação e de conhecimento’, diz Francisco Karam, professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina.

O presente imediato e suas implicações no jornalismo foram tratados por Karam no trabalho ‘O presente possível do jornalismo’, apresentado no 2º Encontro Nacional de Pesquisadores de Jornalismo, realizado em novembro na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, em Salvador.

‘De um lado, todo presente carrega um conjunto de valores, fatos, testemunhos, interpretações que são resultado do acúmulo do passado’, escreveu ele. ‘De outro, o futuro existe como possibilidade, projeção, esperança, movimento em uma ou outra direção. Hoje, o presente de um indivíduo se soma ao presente dos demais; o presente de Beslan se soma ao de Atenas; o de Bagé ao de Ilhéus. São simultâneos os presentes, e as informações sobre eles resultam em possibilidade de saberes compartilhados, polêmicas disseminadas, repartição do mundo vivido’.

Como compartilhar esse presente?

O ritmo imposto pela dinâmica social implica a produção diária de um volume brutal de conhecimento. Diante desse acúmulo, o jornalismo tem que lidar com escolhas, o que se traduz numa deficiência de informação, de temas e assuntos que acabam por ficar de fora da pauta da grande mídia. A saída então é a segmentação em diversos espaços menores, em parte já constituídos e ainda por constituir, que compensariam esse déficit informacional, permitindo à sociedade um maior conhecimento do seu presente imediato.

O preenchimento dessa deficiência implica numa expansão da atuação dos jornalistas, através da segmentação, do surgimento de novos formatos, em lugar do estreitamento do seu raio de ação, conforme alguns críticos costumam preconizar. É o que analisa Francisco Karam, que acumula em seu currículo uma longa experiência acadêmica e jornalística. Suas reflexões sobre jornalismo lhe renderam diversos artigos e dois livros: Jornalismo, ética e liberdade (Summus, 1997) e A ética jornalística e o interesse público (Summus, 2004). Na entrevista que se segue, concedida ao fim do encontro, Karam discute o objeto do jornalismo e suas perspectivas futuras.

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Em sua reflexão, o senhor indica que, ao lidar potencialmente com o presente, o Jornalismo alarga a dimensão do tempo vivido pela sociedade e pelo indivíduo. Como se dá esse alargamento?

Francisco Karam – O jornalismo, ao juntar conhecimentos, ainda que mais superficiais, do conjunto de campos de conhecimento como Física, Matemática, Biotecnologia, Antropologia, Sociologia, Economia, faz com que os indivíduos possam potencialmente ter acesso a essas áreas, e com isso se incorpora no indivíduo uma aceleração dos processos mais imediatos de informação e de conhecimento. Então esse é um aspecto. O outro é que a multiplicidade de mídias hoje permitidas pela tecnologia também pode potencialmente ajudar os indivíduos a participar das particularidades de outros grupos e outras culturas e conhecer um pouco mais dos conteúdos, até mesmo por conta própria. Nesse aspecto, o ritmo dos indivíduos, embora tenha as mesmas 24 horas diárias que tinha há cem anos, faz com que ele compartilhe mais, porque os indivíduos também podem partilhar essa experiência de conhecimento entre si na própria comunidade. Ao mesmo tempo o conhecimento de alguns aspectos da comunidade pode ser repassado por meio do acesso à tecnologia e repartido junto a outros. Então, nesse sentido, me parece que o indivíduo hoje tem alargado seu presente, porque não é apenas um presente de um ritmo lento. Isso pode inclusive ser um problema para ele, em termos de estresse informativo, em termos de qualidade de vida. Mas de alguma forma eu acho que o jornalismo ajudou a alargar esse presente imediato, ainda que nessas 24 horas.

Uma das críticas feitas ao jornalismo é que está colado ao presente. De que forma ele pode contribuir para problematizar o futuro?

F. K. – Toda escolha de cobertura, de fontes, sempre faz alguma uma interpretação que, ainda que sobre o presente seja, ou sobre o passado recomposto no presente, sempre é uma interpretação que tem alguma perspectiva de futuro: se ele se confirmar, se deve ser melhorado, a questão do direito à vida, a questão dos índices inflacionários, a questão dos desabrigados, a questão dos sem-terra. Tudo que é fato, que vira fato, também tem uma perspectiva. É preciso haver ou não reforma agrária? É preciso melhorar ou não a renda? É preciso aumentar o salário ou não? E o que, tomando ou não uma decisão, significa na vida dos indivíduos? Então, há sempre um horizonte de futuro no presente jornalístico.

A tecnologia forneceu ao jornalismo as bases para o alargamento do presente imediato. De que forma essa tecnologia modificará o jornalismo no futuro?

F. K. – Eu não sei o que seria exatamente o futuro do jornalismo, mas eu acho que existem regras técnicas e morais que devem ser buscadas e mantidas, para que o jornalismo consiga ainda distinguir informação do tipo jornalística de outro tipo de informação. Eu acho que hoje há uma possibilidade infinita de acesso à informação, ao conhecimento, por meio de milhões de sites, revistas, jornais, TVs, canais comunitários, rádios, e em tudo isso há uma facilitação tecnológica. A questão do acesso efetivo, qualitativo, depende também do acesso financeiro, da renda, da educação que permitiria isso. Então depende também de um projeto de estado, esse acesso, e, ao mesmo tempo, saber ter um critério seletivo e crítico em relação àquilo que seria uma informação com credibilidade e boa, distinguindo daquilo que seria apenas fofoca e informação descartável.

Até que ponto essas transformações, muitas em curso, modificam a essência do jornalismo, da forma como é hoje praticado?

F. K. – O jornalismo tem um papel incontornável. Ele, a cada momento, a cada dia, serve para que as pessoas, por meio de mediadores qualificados, conheçam um pouco mais sobre os outros, sobre outras áreas. Se a gente pensar se os médicos e sociólogos vão fazer isso, até podem fazer, mas eles estão preocupados com a sociologia, com a medicina, com a engenharia. Então eles não têm tempo de fazer apuração, de buscar determinadas fontes, de colocar isso com os critérios técnicos de estruturação de linguagem, no texto. Então, algum profissional que se dedica a isso o tempo inteiro, da manhã à noite, tem mais condições qualitativas de fazê-lo, porque isto ele vai desenvolver, seja um faro, seja a capacidade de busca de determinadas fontes, seja a estruturação de texto. Tudo isso faz dele um profissional, ele vive disso. É diferente de outros profissionais de outras áreas, que são essenciais à humanidade, mas que não são iguais a este profissional, o profissional da informação jornalística.

Esse alargamento do presente vai contribuir para o surgimento de novas mídias?

F. K. – Novas mídias, não sei. Podemos pensar em alguma, pós-internet. Mas hoje a internet é uma convergência de mídias, de revistas, de jornais, de rádio, de televisão, de imagens fotográficas. A gente pode dizer que o que vão se multiplicar são formatos, vão se multiplicar veículos, desde canais comunitários até aqueles com abrangência planetária. Tudo isso aí é possível, só que é possível acessar daqui de onde estamos, Salvador, um meio em Bangdalesh, e as informações que esse meio proporciona de lá daquela região. Nós vamos sempre estar de alguma forma desinformados, não podemos acompanhar tudo, mas também vamos ter algum grau de informação permitido por essa tecnologia, e isso depende em maior ou menor grau de desenvolvimento de alguns projetos nacionais, de inclusão social, de inclusão digital.

Que tipo de perfil caberá ao jornalista do futuro, em contraposição ao que se tem hoje?

F. K. – Como os jornalistas não conseguem dar conta de tudo que ocorre – porque eles não são deuses nem semideuses, eles são profissionais da informação, que acabam se especializando numa área, tanto no formato tecnológico, quanto na questão de conteúdo –, ao se especializarem do ponto de vista de conteúdo, eles vão desenvolver determinados conhecimentos, capacidade de buscar informações em bancos de dados, de entrevistar, apurar e ouvir determinadas fontes naquela área, por exemplo, na política, na economia e na cultura. Não é que elas não estejam relacionadas, mas são tantas informações e tão infinitos conhecimentos dessas áreas, que é preciso que ele se dedique mais tempo a isso e menos a outras coisas. Então essa especialização é inevitável, a não ser que ele dominasse tudo, o que seria impossível.

Até que ponto a celeridade imposta pelo ritmo da sociedade justifica o imediatismo da mídia?

F. K. – Não tem como escapar disso, a não ser que o jornalismo seja outra coisa, por exemplo, sociologia. Mas o que é que acontece, sendo jornalismo? Qual é o calendário humano? Um dia tem 24 horas, um ano 365 dias. Só que a sociedade se coloca um ritmo hoje que produz muito mais informações e conhecimento do que produzia há cem, cinqüenta, dez anos ou dois anos atrás. Ou o jornalismo tenta acompanhar esse ritmo, seja em grandes jornais de circulação, nacional ou internacional, seja em pequenos veículos especializados ou segmentados – e ao tentar fazer isso obviamente ele tem problema de celeridade –, ou abre mão disso e começa a dar informações anuais, a cada 300 dias teremos informações sobre o mundo, sobre Salvador, a Bahia, o Brasil. Mas aí as pessoas vão dizer: ‘Não quero, estamos agindo no cotidiano e no imediato, nós não temos como ter informações a cada dois dias, porque o calendário é imediato’.

O futuro então será de crescimento do jornalismo, em vez do seu encolhimento?

F. K. – Acho que ele pode crescer, vai depender muito da situação, dos países, do estado, da valorização da profissão, e vai ter que segmentar mesmo, é inevitável. O volume de informação disponível hoje é muito grande. Os meios, as instituições públicas e privadas, categorias profissionais, empresariais, organizações não governamentais, universidades prefeituras, câmaras de vereadores, senado, governos estaduais, câmara dos deputados, Governo Federal e várias outras instituições, muitas que existem, podem desenvolver os seus meios próprios de informação e até dirigir isso a um público específico e também a um público que lê esses seus produtos, como lê os grandes veículos. Às vezes há mais circulação e informação nesses segmentados do que em grandes veículos. Eu acho que essa é uma tendência, e eu a vejo com bons olhos.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)