Saturday, 05 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Polícia na universidade só com vestibular

Não é hora de saber se quem tem razão são os estudantes, que invadiram a reitoria da USP, ou o governo, que ameaça utilizar a polícia para desalojá-los, depois de ter obtido na Justiça a reintegração de posse.

Não se trata de ficar em cima do muro. Trata-se de dar ouvidos e olhos a juízos sensatos, de que é exemplo a entrevista que o professor Roberto Romano, da Unicamp, deu ao Estado de S.Paulo de domingo (27/5, pág. A14), em que diagnosticou: ‘Todo mundo grita, ninguém tem razão’.

A mídia vem apresentando o conflito de forma quase sempre maniqueísta, como se fosse um jogo do qual sairão necessariamente vencidos e vencedores. Antes de qualquer resultado, já obtivemos um que é simplesmente lamentável: ameaçar estudantes com a polícia, tratando-os como se fossem desordeiros.

A questão é muito mais complexa e começa com as súbitas mudanças de muitos professores universitários quando assumem o poder, sejam reitorias ou outras governanças.

Todos estão atentos ao desfecho. Será que José Serra, ex-professor da Unicamp e ex-presidente da UNE, vai jogar a polícia em cima dos estudantes? Se o fizer, vai manchar para sempre a sua biografia.

Uma filigrana

José Aristodemo Pinotti, também ex-professor da Unicamp, de que foi reitor, vai ser o braço direito que permitirá a entrada de policiais na universidade? Numa universidade pública há apenas duas portas de entrada: o concurso público para professores e funcionários, e o vestibular para os alunos.

Está em questão a autonomia universitária, que foi parar na Constituição de 1988, por obra do então deputado Florestan Fernandes. Como diz Roberto Romano, no plano federal, a autonomia universitária ainda não foi regulamentada. E no estadual, também não.

Esclarece Romano que o decreto que deu autonomia orçamentária à USP, à Unicamp e à Unesp é obra do governo de Orestes Quércia, em 1989. Como se trata de decreto, tudo que ali está garantido pode ser revogado a qualquer momento, ao contrário das verbas para a Fapesp, cuja autonomia está garantida na Constituição do Estado de São Paulo.

A situação está confusa. É evidente que os estudantes não têm o direito de invadir a reitoria. Mas que outros recursos lhe foram dados que pudessem evitar o ato extremo? E por que misturar a reivindicação emergencial de 3% de aumento e 200 reais nos salários dos docentes com a questão que pode resolver o presente e o futuro das universidades estaduais paulistas?

Compare-se a invasão da reitoria com as invasões do MST, ainda que os organizadores do movimento prefiram usar o verbo ‘ocupar’ – uma filigrana, pois o resultado para os donos das propriedades ocupadas ou invadidas é sempre o mesmo. O Brasil patina até no modo de formular os problemas: as questões sociais, sejam de estudantes ou de sem-terra, não podem ser tratadas como caso de polícia.

Audiência mútua

Chamar a polícia nessas horas é brincar com fogo. Freqüentemente tragédias irrompem no bojo de mútuas intolerâncias, como foi o caso do emblemático episódio de Eldorado dos Carajás, ocorrido no sul do Pará, quando eram 17 de abril de 1996.

Naquela ocasião, 21 sem-terra foram mortos pela Polícia Militar, 67 foram feridos e alguns ficaram mutilados para o resto da vida. Segundo o legista Nélson Massini, 10 sem-terra foram executados. Sete lavradores foram mortos por instrumentos cortantes, como foices e facões. O então ministro da Agricultura, José Eduardo Andrade Vieira, pediu demissão na mesma noite. E uma semana depois do massacre, o governo FHC criava o Ministério da Reforma Agrária, indicando para ministro o então presidente do Ibama, Raul Jungmann.

O monumento projetado por Oscar Niemeyer para lembrar as vítimas, inaugurado em 7/9/1996, foi destruído dias depois. ‘Aconteceu o mesmo quando levantamos o monumento em homenagem aos operários mortos pelo Exército na ocupação da CSN, em Volta Redonda (RJ)’, disse o arquiteto na ocasião.

Diálogo demora, pois é preciso haver audiência mútua. A polícia pode fazer tudo mais ligeiro, mas chamá-la foi a pior alternativa.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde coordena o Curso de Letras; www.deonisio.com.br