Tuesday, 14 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Um manifesto e tanto

As corporações de mídia chegaram na hora. Na verdade, antes da hora. Ainda faltavam dois minutos para as 17h quando o primeiro carro de reportagem se aproximou da Fundição Progresso, onde foi lançado, na terça-feira (6/11), o Manifesto Contra as Políticas de Extermínio do governo Sérgio Cabral. O horário estava correto: 17h. Antes de mim – cheguei às 16h30 –, apenas o Rafael Kalil e sua equipe estavam no local. Preparando o som, com apoio irrestrito de Perfeito Fortuna, homem perfeitamente afortunado por trabalhar com alguém como a Vanessa Damasco.

O primeiro a ser cercado pelos coleguinhas foi o advogado João Tancredo, um dos principais responsáveis pelas investigações da Chacina do Alemão, quando ainda era presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB. Em seguida, a turminha colou nos juízes João Batista Damasceno e Regina Rios, dois co-organizadores do Manifesto. Por fim, Marcelo Yuka conversou com os jornalistas, lá pelas 18h. Com uma hora de atraso, a equipe organizadora decidiu iniciar os trabalhos. Neste exato momento, tomei o microfone e anunciei os nomes que iriam compor a mesa: João Batista Damasceno, Regina Rios, Marcelo Yuka, João Tancredo e Adriana Facina, professora do Departamento de História da UFF. Como o Damasceno estava sendo entrevistado pela TV Globo, contei uma breve história sobre a proximidade desta empresa com a ditadura, com o único objetivo de entreter os convidados – cerca de 100 pessoas. Vejam bem: isto fez parte do ato. Será publicado em algum lugar? (Propaganda: informação exclusiva só no fazendomedia.com)

Composição da mesa

Mesa composta, tento passar a palavra à Regina Rios, em nome do cavalheirismo, que recusa. Começamos então pelo cientista político e juiz de direito João Batista Damasceno, que fez uma intervenção bastante contundente e mostrou como a polícia adota abordagens diferentes de acordo com a região em que atua. Corte de classe.

Em seguida, João Tancredo contou o que viu em Marechal Deodoro, na Favela do Fumacê, há poucos meses: um cenário típico de execução. Numa casa pequena, sangue espalhado pelo chão, uma panela de comida e uma garrafa de refrigerante. Seis pessoas foram assassinadas porque a polícia não conseguira o dinheiro do arrego, segundo os moradores. E a polícia em questão era o Bope, parceiro, que na real é bem diferente.

A juíza Regina Rios, talvez sentindo que ainda havia muita gente para falar, fez apenas uma observação e passou a palavra. Com todo o carinho e a gentileza que lhe são peculiares.

Marcelo Yuka tomou a palavra e afirmou que nem todos concordam que a melhor maneira de combater a violência é com mais violência. Essa não é a paz que queremos. ‘A gente está aqui para dizer que nem toda a sociedade concorda com essa política de extermínio.’

E a professora Adriana Facina superou todas as minhas expectativas que, confesso, eram altíssimas. Explico (e essa notícia não será publicada pelas corporações): até o início do ato, não havíamos combinado quem iria compor a mesa. Perguntei a um, perguntei a outro. E nada. Até que o Yuka disse: você escolhe. Foi o que fiz. Além dos três organizadores do Manifesto (Yuka, Regina e Damasceno), escolhi Adriana Facina para representar a academia e o João Tancredo porque sem ele, sinceramente, acho que seria muito difícil que houvesse alguma investigação séria sobre a Chacina do Alemão (27 de junho de 2007).

Homens de preto matando preto

Voltando à Adriana. Pegou a palavra e… ‘A mídia não aperta o gatilho, mas é cúmplice dessa política fascista do governo do estado. A revista Veja está ajudando a exterminar quando apóia o filme Tropa de Elite, que legitima essa política absurda’. E por aí foi. Deu nome a todos os bois e, por que não dizer, vacas. Claro que as ponderações necessárias foram feitas. O jornalista, o trabalhador da notícia, não tem nada a ver (em geral) com a linha editorial do jornal em que trabalha. Ele apenas vende sua força de trabalho, mas isso não significa que ele concorde com a vocação golpista de seu patrão.

Pouco depois chegaram mais três companheiros para compor a mesa: o deputado estadual Marcelo Freixo, representando o Partido Socialismo e Liberdade, João Luiz Pinaud, pela Associação Americana de Juristas, e Margarida Pressburger, pela Ordem dos Advogados do Brasil. Marcelo ressaltou que a responsabilidade dessa política de insegurança pública deve ser atribuída ao governador Sérgio Cabral e seus ideólogos, e não aos policiais. ‘Que aí é maltrapilho matando esfarrapado’. O deputado socialista, que é também professor de história, fez uma análise que remonta à formação social brasileira. ‘Hoje, são homens de preto matando pretos ou quase pretos.’ Ao que seu xará Yuka completaria: ‘Todo camburão tem um pouco de navio negreiro.’

Atestado de mulher de malandro

Após essas intervenções, tivemos ainda a participação da Fernanda, que falou por um dos movimentos sociais mais importantes do mundo, o MST. E na seqüência falaram Maurício Campos (Rede Contra a Violência), Joana D’Arc (Grupo Tortura Nunca Mais), Cyro Garcia (PSTU), Mário Augusto Jakobskind (ABI) e João Ricardo (Associação de Moradores de Vigário Geral), além do sociólogo Renato Cinco e de Marcílio Rosa, que se apresentou apenas como ‘cidadão do mundo’. Todos signatários do Manifesto. Durante toda a atividade (que durou das 17h às 21h), recolhemos cerca de 50 assinaturas. Ou seja, 50% de tudo o que já havíamos conseguido. Agora já somos 150 pessoas contra a política de extermínio do governo Sérgio Cabral, perfeitamente alinhada à ideologia neoliberal e à economia de mercado. Nesta quarta-feira, o representante da ONU para execuções extra-judiciais, Philip Alston, receberá uma cópia do Manifesto. Na quinta-feira (8/11), o grupo organizador do Manifesto (e você, leitor, também pode aparecer), estará na Assembléia Legislativa do RJ. Lá, o representante da ONU tem encontro marcado com o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, deputado petista Alessandro Molon, que recebeu nosso Manifesto… Mas não se manifestou. A gente vai lá perguntar por quê.

Já notei alguma repercussão do ato na mídia alternativa e nas corporações de mídia. Essas, invariavelmente ignoram o trecho do manifesto que diz respeito a elas mesmas. Trata-se do terceiro parágrafo: ‘Nossa preocupação se estende ao posicionamento de certos setores da mídia que reforçam a ideologia do extermínio, em afronta ao Estado Democrático e de Direito, como o contido no editorial de jornal [carioca] de grande circulação do dia 26 de outubro, onde se lê que ‘as camadas pobres da população converteram-se numa fábrica de reposição de mão-de-obra para o exército da criminalidade’.’ Não importa. Nossa medida de sucesso não pode ser dada pelo vulto da cobertura. Podemos avançar muito, mesmo com pouca cobertura. E podemos não avançar nada, mesmo com muita cobertura. Nós temos que avançar apesar da cobertura. E todo avanço que conquistarmos apesar dessa cobertura será uma vitória.

Apesar disso tudo, que fique claro: ontem, 6 de novembro de 2007, foi o dia em que as corporações de mídia assinaram seu atestado de mulher de malandro.

******

Jornalista, editor do FazendoMedia