Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O coronel, o jagunço e o lobisomem

Existem fenômenos que, tendo a crer, somente acontecem em Sergipe, especialmente em Aracaju. Tal qual o Bar do Pastel, que de uma hora para a outra deixou de vender pastel, mas conservou o nome; ou então a Avenida Beira Mar, que não beira o mar em local algum; a flor do esdrúxulo nasce agora apontada para a velha dicotomia entre judiciário e imprensa, com o odor do estrume dos cavalos da ditadura militar brasileira em galope contra a liberdade de imprensa.

Explicarei o porquê de minha conjectura, mas antes quero frisar o que me parece ser um fenômeno isolado da realidade das demais regiões do Brasil. A impressão que me resta é a de sobra de tempo no quartel do Judiciário sergipano e que, por tal, seus soldados andam pelos corredores, assoviando, aguardando um evento para animar a jornada de trabalho. Sei que não é assim, mas parece, pelo menos por alguns instantes, quando abrolham alguns bizarros e curiosos momentos adventícios.

Desta vez, o desembargador do Tribunal de Justiça de Sergipe Édson Ulisses Melo, depois de ler o texto ficcional Eu, coronel de mim, de autoria do jornalista Cristian Góis, resolveu tomar suas medidas de desconto e se virou contra o jornalista. Para o reclamante, o autor da obra cometeu o delito de criar os personagens “Jagunço das Leis” e o “Coronel”, com a segunda intenção de fazer referência subliminar a ele (Ulisses) e ao governador de Sergipe, Marcelo Déda, respectivamente.

Quando se pensava que o fato seria tratado como um infeliz movimento do desembargador, e que se conjurasse para um acordo antecipado que rapidamente finalizasse o descalabro, antes que caísse na malha popular e tomasse ares de situação vexatória, ridícula e até hilária, o contexto desalinhou para o sentido contrário. A Justiça acatou a denúncia feita pelo Ministério Público Estadual (MPE), que acusa criminalmente o jornalista por ter publicado um texto ficcional em que o processante se sentiu enquadrado no enredo.

Cheiro de autoritarismo

Eu li o texto de Cristian Góis, tenho a minha opinião sobre o contexto reclamado, mas não vou me arvorar em dizer se foi ou não enquadramento de personagens reais em expressão ficcional. Até porque não importa se a carapuça foi feita sob encomenda pelo jornalista para caber na cachola do desembargador ou se o próprio Ulisses, desvairadamente, achou que ela cabia diretinho na sua cabeça.

O que quero é bem frisar um outro experimento meu. Em virtude desse episódio, senti o cheiro da ditadura militar. Mesmo que eu não a tenha vivido contemporaneamente, conheço bem muitos registros sobre o período e sei da fedentina que o autoritarismo da época causou. Lembrei-me, agora, por oportunidade, de uma outra obra ficcional. A novela Roque Santeiro, que iria estrear em 1975, mas foi proibida pela censura brasileira, estreando tão somente em 1985, quando as portas para a democracia já se diziam abertas. O autor, Dias Gomes, e a obra foram desqualificados pelo regime militar, sob a acusação de fazerem alusões subliminares à realidade brasileira. É ruim fazer isso?

Também lembrei de uma outra obra-prima de Dias Gomes, O Bem-Amado, que teve 37 de seus 178 capítulos retalhados pelos censores, mais foi ao ar em 1973. A ficção incomodava os militares por satirizar o coronelismo na figura de um prefeito corrupto, autoritário e populista, Odorico Paraguaçu, interpretado por Paulo Gracindo. Lima Duarte era o jagunço Zeca Diabo. Um dos mais detestados adversários de Odorico era o jornalista Neco Pedreira, dono do jornal local, representante da imprensa no drama. A Trombeta, jornal de Sucupira, foi perseguido pelo coronel por querer tornar público os desmandos do chefe político.

O jornalista lobisomem

Uma coisa eu tenho como certa: para quem gosta da verdade o jornalista é um homem, e para quem não gosta é um lobo. Sabemos dos erros da imprensa, temos a consciência de que boa parte dela ainda pertence aos donos do poder e do capital. Muito há para se melhorar.

Todavia, é indiscutível a importância dela como ferramenta crucial na defesa de uma sociedade mais justa. Que o embate seja, em primeira mão, no campo dos argumentos. A liberdade de expressão é a chave da democracia. Quando vejo um caso como este (o de Cristian Góis) fico receoso pelo que sinto minha liberdade de jornalista ameaçada. Que qualquer profissional seja um homem, antes de ser um lobo feroz. Sou otimista, por isso não me contenho em dizer: quem não se sente galinha não tem medo de lobo.

Tenho a impressão que Cristian Góis vai ser esfolado.

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Gilton Lobo é jornalista, Aracaju, SE