Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

A criminalização das favelas





Pena que uma bela foto como a da lavra de Custódio Coimbra seja utilizada para criminalizar os moradores de conjuntos habitacionais de baixa renda. Ela se encontra na primeira página do Globo de domingo (17/6), ocupando 25% do espaço, com a sugestiva legenda: ‘Um canal poluído de esgoto separa a extensa Favela do Anil dos prédios da Vila Pan-Americana, onde ficarão alojados atletas que disputarão os jogos’.


Na página 19 há outras quatro fotografias, uma reportagem principal e duas de apoio. O título da principal é ‘A poluição no território do Pan’. O repórter Cláudio Motta inicia o texto assim:




‘As principais instalações dos Jogos Pan-Americanos convivem com a poluição. Lixões clandestinos, assoreamento de rios e lagoas, despejo de esgoto sem tratamento nos corpos hídricos e crescimento desordenado de favelas foram observados por uma equipe do Globo (…)’.


No parágrafo seguinte, o jornalista registra:




‘Vista de cima, a Vila Pan-Americana, na Barra da Tijuca, é um condomínio cercado por canais poluídos e vizinho de duas favelas: Canal do Anil e Rio das Pedras. Uma das maiores preocupações será evitar que as oito mil pessoas que ficarão na vila sintam o cheiro dos gases sulfídrico e metano’.


Quer dizer que os atletas não podem sentir cheiro ruim durante 15 dias, mas os 8.000 moradores do Canal do Anil, que ali estão há 45 anos, podem?


Tinta azul


Na matéria de apoio, o repórter Daniel Engelbrecht escreve sobre o crescimento das favelas. O título: ‘Expansão de favelas ameaça mais que a natureza na cidade’. Subtítulo: ‘População dos morros cresceu 6 vezes mais que a do asfalto em 10 anos’. Desconsiderando essa lógica binária idiota (morro vs. asfalto, que o próprio Canal do Anil desconstrói por ser favela na planície), ainda é preciso registrar que O Globo tenta responsabilizar os moradores de áreas pobres por tudo de ruim que aconteça. O que não é verdade.


Estive no Canal do Anil no fim de maio (não, não sobrevoei a área: fui lá dentro), conversei com moradores e apurei algumas de suas denúncias. Por exemplo: o governo federal disponibilizou 26 milhões de reais para a urbanização do entorno da Vila Pan-Americana. Em vez de as corporações de mídia perguntarem onde foi parar o dinheiro, preferem alugar um helicóptero e, lá de cima, afirmam que a culpa é dos pobres. O que não deixa de ser uma metáfora da superficialidade com que tratam questões relevantes a respeito da administração do prefeito César Maia (PFL) – no quarto mandato à frente da prefeitura do Rio.


Há mais: das 1.500 casas, 542 foram numeradas com tinta azul em suas fachadas pela prefeitura no início do ano. Pouco depois, os moradores começaram a receber telefonemas. Para urbanizar? Não. Para que fossem à prefeitura pegar os cheques (entre 2,8 mil e 16 mil reais) e abandonar as suas casas. O mesmo aconteceu no Arroio Pavuna e no Canal do Cortado (ver aqui).


Acima de qualquer suspeita


Basta pronunciar o nome Maria Helena Salomão para os moradores fazerem o sinal da cruz. Ela é a responsável pelo programa ‘Morar Sem Risco’, da prefeitura, esse que chega na favela, diz que está ali para melhorar as condições do barraco, mas na verdade está preparando o terreno para a expulsão dos moradores. Para a glória das construtoras e dos novos ricos da Barra da Tijuca.


A área à esquerda do canal, que não aparece na foto, teria sido comprada pela empreiteira Carvalho Hosken, de acordo com o presidente da Associação dos Moradores do Canal do Anil, Francisco Alberto dos Santos. Foi essa empresa quem assinou os cheques que financiaram a expulsão dos moradores do Arroio Pavuna, num flagrante desrespeito à lei. A Carvalho Hosken foi uma das maiores doadoras de campanha do prefeito César Maia.


Grandes doadoras de campanha costumam ser também grandes anunciantes. O que, para o jornalismo neoliberal, as transforma em empresas acima de qualquer suspeita. Quando estive no Canal do Anil, disse aos moradores: ‘A pressão vai aumentar cada vez mais. Podem aguardar reportagens no Globo esculhambando vocês’.


Não deu outra.

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Jornalista, editor do FazendoMedia