Wednesday, 11 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

A importância dos fatos miúdos

** Nota 1 – ‘O prefeito César Maia disse que não iria permitir que os quiosques fossem cercados para a realização de festas em áreas vips, mas a ordem não foi cumprida. Vasos de plantas foram utilizados para demarcar as áreas restritas. Na altura do Posto Quatro, um vendedor de bebidas seguiu o exemplo e fez uma cerca com um espaço para dez mesas, com quatro cadeiras. Cada mesa custava R$ 100,00.’

** Nota 2 – ‘Apesar da repressão da Guarda Municipal, os ambulantes se espalharam por toda a orla de Copacabana. Era vendido todo tipo de mercadoria.’

Estas ‘notas’ são, na verdade, trechos colhidos ao acaso na primeira edição do Novo Ano, em O Globo, a mesma que reitera o ‘fim da Era César Maia’ (onze anos à frente da Prefeitura do Rio de Janeiro) e o início do ‘Ano da Bossa Nova’, decretado pelo prefeito.

O que há nelas de significativo?

Em princípio, seriam apenas aspectos da informação miúda sobre um tipo de realidade a que teriam se acostumado os habitantes do Rio. Mas é útil atentar justamente para a dimensão ‘miúda’ dos fatos, caso se queira ver abaixo da superfície da gestão – o ponto de partida discursivo de todo marketing eleitoral – das grandes cidades.

Taxa de homicídios

Comparações ajudam, mesmo quando aparentemente desproporcionais. Nos anos 1990, Nova York ressurgiu do caos da depredação e da violência urbanas quanto o prefeito Ralph Giuliani (agora aspirante à presidência dos Estados Unidos) partiu do ‘miúdo’ para reorganizar a cidade. Primeiro, a política de ‘tolerância zero’, que não abrandava o rigor no tratamento dos chamados pequenos delitos. Depois, a ousada intervenção imobiliária no Harlem, que vem possibilitando a recuperação progressiva daquele bairro lendário. Michael Bloomberg, o prefeito atual (que também suspira pela Casa Branca), não destoa administrativamente de seu antecessor.

Ora, dirão, Nova York… Mas a comparação é válida, quando se considera que o Rio de Janeiro é hoje, como a maior cidade norte-americana, uma megalópole de 15,4 milhões de habitantes – não mais a saudosa metrópole, onde Tom Jobim não precisava ‘correr do pivete, tentando chegar ao elevador’. Aumentou de escala a população, a criminalidade, o caos urbano. A comparação é legítima, sim, porque não se trata de poder econômico ou de arrecadação municipal, mas de atitude política. A megalópole demanda um tipo novo de gestor, sob pena de afundar no caos.

Ou talvez não seja necessário ir tão longe na comparação. A mesma edição de O Globo revela que São Paulo, pelo menos no que se refere à taxa de homicídios, praticamente igualou a façanha nova-iorquina, reduzindo em 73% os índices de crimes de morte.

A patafísica da gestão urbana

Não adianta separar as competências estaduais e municipais, já que os problemas estão interligados em suas causas. Mas no Rio é gritante a evidência do abandono da cidade por parte do governo municipal, indiferente à transformação do espaço urbano numa espécie de ‘corte dos milagres’ medieval, onde se incentiva a degradação ambiental, tanto em áreas florestais quanto nas ruas. O espírito de desrespeito a normas e regras é abrangente. Não dá para se distinguir a favelização consentida da depredação de equipamentos coletivos ou do inchamento da população de rua.

É esta a atmosfera geradora do fenômeno que o sociólogo e poeta alemão Hans Magnus Enzensberg chamou de ‘guerra civil molecular’. Ground zero (‘marco zero’) – a idéia de terra arrasada, que solicita reconstrução – é o nome dado em Nova York ao imenso buraco que restou das Torres Gêmeas. Aqui pode ser o nome da gestão da coisa pública.

O inquietante é que as proclamações jornalísticas do ‘fim de uma Era’ ou as inquietações cívicas transparentes nas cartas de leitores de O Globo não apontem para nada de alternativo às soluções contidas no velho jogo da política eleitoral. A política, tal como a conhecemos e como revelam as habituais pesquisas de opinião, já entrou definitivamente no domínio da patafísica, isto que o poeta e dramaturgo francês Alfred Jarry (1873-1907) definia como a ‘ciência’ das soluções imaginárias, onde as coisas se tocam apenas tangencialmente, ‘empurradas pela barriga’. Na patafísica da gestão urbana, a cidade real é tangenciada – por factóides, imagens televisivas e internet –, jamais considerada em sua vicissitude concreta, que se verifica nos pequenos acontecimentos do dia-a-dia. Daí, a importância de se enfatizar jornalisticamente o ‘miúdo’ e, no limite, prevenir contra as eventuais surpresas que nos reserva a patafísica eleitoral.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro