Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mídia e a nova criminalidade

Seria repetitivo um escrito que tratasse dos deveres de cuidado que o direito e a ética impõem ao profissional da comunicação, em especial ao jornalista, quando veicula matérias a respeito de procedimentos penais. Surgem do trato com o meio de comunicação responsabilidades especiais, como fonte de risco que é à dignidade da pessoa humana e a seus corolários, muitos deles expressos no texto da nossa Constituição e em outras leis que por aí estão em vigor.

Mas aqui procura-se avançar um pouco nessa discussão e alcançar – sempre levando em consideração a indispensabilidade da notícia e da liberdade de expressão – os prejuízos que a cobertura jornalística dos processos penais pode trazer a direitos supra-individuais, ou seja, a direitos que não estão na esfera do próprio indivíduo.

Em outras palavras: como os jornalistas entusiastas das notícias penais podem, muito ao revés do quanto crêem, estar com suas notícias acobertando a grande ineficiência das instituições e, até mesmo, do próprio Direito penal para lidar com a criminalidade do mundo moderno.

1. Nova criminalidade, bens difusos e tráfico de drogas

Há tempos penalistas e criminólogos já alertam para o fato de vivermos em contexto social de vanguarda, que trouxe consigo uma criminalidade nova, difusa. A sociedade moderna tem seus meios complexos de organização e, com eles, os modos também intrincados de transgressão de suas próprias regras e atribuição de valores.

Dos processos modernos de organização surgem ofensas ao contexto social que antes sequer eram cogitadas: por exemplo, a ofensa ao meio-ambiente, à propriedade imaterial (como a conduta da pirataria e a falsificação), ao sistema financeiro nacional, à ordem econômica como um todo. São então, de um lado, condutas, por assim dizer criminosas, que não ofendem bens de pessoas determinadas, mas sim bens difusos ou coletivos.

De outro lado, mesmo as ofensas que não são inéditas, como o tráfico de drogas, assumem, por conta da modernização social, uma complexidade de organização jamais enfrentada pelos órgãos de repressão, o que muito tem dificultado a persecução dos responsáveis ou, indo mais longe, a própria atribuição de responsabilidade por resultados danosos, como no caso da lesão ao meio ambiente.

Não se diz que a sociedade está fadada a tolerar, silente, ofensas como as gestões fraudulentas ou a degradação do meio ambiente, mas é certo que os instrumentos penais, ou seja, a via criminal de repressão a essas condutas, está debilitada, messmo em nível mundial.

Os responsáveis pelos novos delitos estão engendrados em organizações lícitas, com responsabilidades estritas e limitadas, à dependência de número indefinidos de ordens de outros partícipes, de vontades que não são as próprias, de deliberações corporativas ou de jogos econômicos. Nossa lei ambiental, até, passou a admitir a responsabilidade penal da pessoa jurídica, em um atrapalhado modo de atribuição de penas que até agora não se acertou.

Na passagem dessa criminalidade da classe baixa para a da classe alta, ou seja, daquela que atentava contra o patrimônio para aquela cometida pelo detentor do patrimônio, expõe-se a fragilidade do sistema repressor penal: poucos indivíduos são efetivamente condenados pelos delitos novos como os ambientais, os financeiros, os relacionados à honra e a intimidade.

Em relação ao tráfico de drogas, sua organização, a pequena rejeição social – já que não existe apenas o traficante que quer vender a droga, mas a sociedade que a quer adquirir – e seu vasto poder financeiro devem ser todos considerados para que se enxergue a realidade de que sua coibição tem deixado muito a desejar.

Em tempos em que se consideram novos crimes e novos interesses a proteger, a realidade impõe reconhecer-se que nossos instrumentos de repressão – da polícia à justiça, na democracia – têm muito o que refletir e avançar.

2. Nova criminalidade, nova ‘cobertura jornalística’

O profissional da imprensa observa que, diante da nova criminalidade, a notícia criminal mudou de matizes. As perseguições policiais e os crimes de sangue, as notícias longas sobre julgamentos de homicídios passionais ou de assaltos que marcam época são substituídas, em um processo de adaptação, pelas notícias da perseguição à corrupção e aos delitos de colarinho branco.

O policial truculento e a troca de tiros substituem-se pela cobertura do cumprimento dos mandados de prisão e das investigações com lastro legal, com o enaltecimento das instituições que perseguem a criminalidade e da polícia especial, com seus ultra-secretos serviços de inteligência.

É evidente que, em todo esse contexto, tende a brilhar, no país, a estrela da Polícia Federal. Dela é a atribuição para a persecução da maioria da criminalidade difusa, dos crimes ambientais mais graves, das organizações sindicais, do tráfico internacional de drogas, dos delitos contra a ordem econômica em geral. Louvável seu trabalho, principalmente se estiver dedicada a começar pela limpeza da própria casa.

Mas, em relação ao papel da imprensa, pode-se recomendar cautela ao expor em excesso os instrumentos de repressão à nova criminalidade sem a reflexão de sua eficiência real. Não por problemas da imprensa: é que o Direito penal tem a grave tendência de ocultar sua ineficácia por meio de símbolos que a própria mídia elege, transmitindo uma sensação de segurança que se distancia da realidade.

A prisão de um único juiz acusado de corrupção, de um eleito rei da pirataria, ou as algemas que imobilizaram poucos membros da diretoria de uma empresa envolvida em fraude contábil de escala mundial, quando transformados em imagem na TV ou nas revistas, retiram e muito de foco a necessária discussão sobre o alcance muito mais amplo da criminalidade difusa. Ou, pior, de se saber se a repressão criminal tem adiantado de algo para diminuir a corrupção em alta escala, a violação à propriedade intelectual, a degradação do meio ambiente, ou a rede global de tráfico de drogas. Estas mesmas drogas que têm seus maiores consumidores na sociedades da Europa e da América do Norte.

A cobertura jornalística criminal, mesmo na sua mais refinada escala do colarinho branco, deve atentar para evitar eleger heróis da lei e ordem, o que pode ter quase o mesmo efeito deletério que enaltecer, expressa ou veladamente, condutas criminosas. Há o risco de que instituições sirvam-se da comunicação para evitar desnudar o fato de que a diminuição dessas complexas formas de ofensa à sociedade não se reduzem a uma perseguição de mocinho e bandido.

3. Conclusão

A cobertura jornalística policial, face à nova criminalidade, assume feições modernas. Nem por isso pode descuidar dos deveres de ética atinentes a todos aqueles que detêm poder. Se o sistema penal como um todo já se serve dos meios de comunicação para assegurar seu efeito ao menos simbólico, com maior gravidade isso ocorre diante da criminalidade da alta sociedade ou do crime organizado, em que sua ineficiência se faz ainda mais gritante.

Na matéria jornalística que se pretenda isonômica, ao lado de notícias de prisão e de processos penais em crimes modernos, deve-se abrir algum espaço relevante às considerações sobre a eficácia das instituições em reprimir condutas cujos alcance e capilaridade ainda se está por compreender.

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Advogado especializado em direito de imprensa, mestre e doutorando em Direito Penal pela USP, autor de Responsabilidade Penal na Lei de Imprensa: Responsabilidade sucessiva e Direito Penal Moderno e da novela A Hora do Carvoeiro: História de um amor pelo crime; e-mail (victor@btadv.com.br)