Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A mídia jornalística e a segurança pública

O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (25/3) pela TV Brasil discutiu o papel da mídia diante do enfrentamento entre as forças de segurança pública e o crime organizado. No Rio de Janeiro, cinco anos após as primeiras Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) serem implantadas em comunidades marcadas pelo domínio do tráfico de drogas e das milícias, uma série de ataques desestabilizou a retomada dos territórios. Em São Paulo, uma poderosa facção criminosa comanda, de dentro de presídios, a distribuição drogas pela cidade e confronta a polícia. A situação se repete por todo o país, sobretudo na região Nordeste, onde os índices de violência são alarmantes.

Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro os sociólogos Jaqueline Muniz e Michel Misse. Jacqueline Muniz é doutora em Ciência Política, professora da Universidade Cândido Mendes (UCAM) e sócia fundadora da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina. Professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Misse estuda o processo de criminalização no Rio de 1950-2000. Em São Paulo o debate contou com a presença do cientista político Guaracy Mingardi, especializado na área de segurança pública, que foi secretário de Segurança de Guarulhos.

Antes do debate no estúdio, em editorial [íntegra abaixo], Dines sublinhou que a escalada da violência no Brasil é disseminada: “O Estado brasileiro não admite esta ameaça à integridade do seu território e à segurança do seu povo. No início de abril, um contingente de 4 mil homens do Exército ocupará o estratégico Complexo da Maré, no Rio, e lá permanecerá o tempo necessário. O reforço dará às polícias militar e civil a oportunidade para corrigir-se, livrar-se da banda podre e retomar a iniciativa. Não se pode esquecer que o crime organizado é o filho bastardo dos políticos sem escrúpulos e das milícias paramilitares. E este aviltante casamento só pode consumar-se quando a mídia se distrai e esquece sua função de fiscalizar poderes, denunciar abusos e proteger a cidadania”.

Entre o sonho e a realidade

O programa entrevistou o ex-secretário nacional de Segurança Pública, o sociólogo Luiz Eduardo Soares, sobre os motivos que levaram à deterioração das UPPs e fizeram com que a corrupção, a brutalidade e a disputa pelos territórios voltassem às comunidades. “Nós podemos ter um salto de qualidade. Nem abandono, nem truculência. Mas a tal política de proximidade se mostrou política de abalroamento porque não se improvisa uma mudança cultural nas práticas policiais, nem transformações na sua estrutura organizacional. E não houve, de fato, um investimento nesse ponto fundamental. Aquilo que precisamos – para que os valores mais importantes que um dia parecia que a UPP talvez representasse sejam preservados e cultuados – é de uma transformação profunda nas instituições policiais. Isso passa por iniciativas do governo, mas também por mudanças constitucionais, a começar pela desmilitarização”, propôs o sociólogo.

Na opinião de Luiz Eduardo Soares, parte da imprensa perdeu o distanciamento crítico para abordar o projeto das UPPs. “A mídia mais relevante nesse caso estava associada ao projeto como coautora. Esse foi um projeto que veio da sociedade civil, da área empresarial, como o apoio dos grandes grupos de mídia. Não nasceu da polícia. Ao contrário, a polícia sempre reagiu à iniciativas desse tipo, particularmente a Polícia Militar. Isso não nasceu da Secretaria de Segurança Pública. Isso nasceu de grupos empresariais que se associaram e discutiram o problema. Eu não digo isso criticamente. Acho que é um direito que a sociedade civil tem. Que bom que haja ideias e propostas e que elas sejam discutidas. Quando, no entanto, a mídia se torna parte envolvida diretamente na confecção do projeto, e da sua implementação, é claro que se paga um preço na objetividade”, ponderou Soares.

Paulo Motta, editor executivo de O Globo, disse que é uma surpresa que o crime organizado tenha demorado tantos anos para reagir às UPPs. “O tráfico está há 40 anos dominando as favelas, assim como as milícias. São negócios milionários que envolvem vans, mototáxis, ‘gatonet’, distribuição de gás. São interesses prejudicados, interesses por onde havia também políticos associados. O que me espanta é que só agora tenha ocorrido essa reação. Quanto à polícia, a polícia é despreparada há muito tempo”, disse.

Motta discorda de que os jornais tenham perdido a objetividade: “A imprensa tem que estar próxima de um projeto, de uma política pública; eu acho que é inquestionável que [a UPP] seja um caminho diferente, inovador, nesses 30 [ou] 40 anos, quando o tráfico e a milícia tomaram conta de 1/3 do Rio de Janeiro. Eu acho importantíssimo que a discussão seja feita sem envolvimento político por trás disso. O que estávamos discutindo era o esvaziamento econômico do Rio de Janeiro, o esvaziamento turístico do Rio, as empresas fugiam. E o que os secretários de Segurança faziam na época? Enxugavam gelo. Dizer que a imprensa tem um envolvimento nisso? Ao contrário. A gente publicou todas as críticas, nós próprios fizemos críticas. Agora, é um processo que vai ter vai-e-volta, vai ter críticas, acertos, erros. Desqualificar isso por questão política eu acho que é um desserviço ao Rio de Janeiro”.

A voz da comunidade

No debate ao vivo, Dines perguntou o porquê de a reação do tráfico ter ocorrido apenas cinco anos depois do início do projeto das UPPs. Na opinião de Jaqueline Muniz, os ataques não podem ser encarados como uma ação orquestrada do crime organizado. Seria uma espécie de publicidade negativa, já que um ataque pontual gera uma contraofensiva, como ocorreu na ocupação da favela da Maré. Ela classificou os fatos recentes como “ataques de terror” porque o crime não tem força suficiente para resgatar os territórios ocupados pelas UPPs, nem base social de sustentação que torne possível a organização de guerrilhas. “Só sobra atos de terror porque estes são baratos, porque basta ter vontade, disposição, uma arma na mão e nenhuma inteligência por trás”, explicou a socióloga. Os recentes ataques podem estar apontando para conflitos ligados a práticas ilegais estabelecidas nas comunidades, como o “arrego”.

“O problema das UPPs é que elas não são uma ‘andorinaha sozinha da PM que faz o verão da pacificação’. O grande desafio das UPPs sempre foi, desde o início, de um lado a resistência social da população em função de um histórico, de uma memória dramática de encontros com a polícia nos últimos 30 anos nas comunidades populares, e de outro a recalcitrância armada que encontra guarida nessa resistência social. E isso é previsível, estava no planejamento das UPPs”, explicou Jaqueline Muniz. Para que o projeto pudesse ser implantado com sucesso, deveriam ocorrer ações de inteligência e investigação antes, durante e depois da retomada das comunidades – o que não ocorreu.

Não houve, na opinião de Jaqueline Muniz, um grande ataque à pacificação: “Vários meios de comunicação ultrapassam o seu lugar e querem exercer o governo pautando uma agenda. E o medo é sempre péssimo conselheiro. Diante do medo, nós optamos por agendas ocultas, implícitas ou subentendidas”. A socióloga ressaltou que o projeto das UPPs não tinha como finalidade eliminar o tráfico de drogas das comunidades, mas sim administrar a ordem pública e a libertação dos territórios do domínio armado ilegal. Agora, as práticas criminais estão menos visíveis. À medida que o trabalho da mídia é seletivo e arbitrário na tradução de atos de violência em fatos jornalísticos, ele acaba contribuindo para ao agravamento do terror. Seja quando exerce a censura a informações, maquia a realidade ou dá toques ufanistas e oficialistas no seu discurso.

“Apelidaram-se os jovens policiais saídos direto da Academia para as UPPs de ‘smurfs’, porque se tratava de ‘azulzinhos’, uma espécie de autoridade de brinquedo. Não são os déspotas, os tiranos, os senhores da guerra do passado. E os traficantes que ficaram não são mais os donos do morro, são apelidados de ‘pulga de bunda’. Há microautoridades, uma disputa de autoridades em busca da legitimidade de consentimento”, afirmou Jaqueline Muniz. Ela disse que o efeito ostensivo de polícia nos territórios é provisório e limitado no tempo. É preciso reconstruir a legitimidade da polícia diante dos moradores. No contexto atual, a polícia está englobando o trabalho social de outros agentes públicos.

Quem comanda o submundo?

Guaracy Mingardi explicou que a partir da ascensão da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo, no início dos anos 2000, o crime foi se aglutinando. “Não há disputa entre o tráfico. O que acontece é uma guerra surda entre setores da PM e setores do PCC, que se matam nas ruas como aconteceu em 2012, 2006, 2002, 2001”, relatou o cientista social. Já no Rio de Janeiro, o grau de organização do crime não é tão forte que possa enfrentar o Estado como um bloco único.

Dines pontuou que a imprensa é o elo entre a sociedade e as forças de segurança pública. Para Guaracy Mingardi, a mídia sempre pecou na cobertura da área de polícia. “O repórter policial sempre trabalhou com o dado oficial, com a entrevista. Quando ele conversa com o criminoso, é com o criminoso preso, é com outra pessoa. Não é mais o criminoso solto. Isso traz restrições muito grandes”, disse Mingardi. Uma delas, é quando a imprensa noticia que um suspeito confessou determinado crime espontaneamente, quando, na verdade, foi forçado pela polícia a assumir a culpa. “Isso é papo furado e a imprensa engole com a maior tranquilidade. Quando você aceita isso porque a sua fonte disse, você está distorcendo os fatos e esse, para mim, é o principal erro da imprensa na área policial: aceitar o oficial como real e misturar as duas coisas”, disse Mingardi.

Michel Misse considera que houve exagero na cobertura da reação do tráfico no Rio de Janeiro. “Houve uma coincidência entre esses ataques e as manifestações populares que ocorreram também nessas áreas. E, provavelmente, houve também algum grau de confusão na população. O grau de informação do que ocorreu ali é baixo”, avaliou. Ele ressaltou que os relatórios oficiais ganham mais espaço do que o relato dos moradores das regiões em conflito. O governo do Rio de Janeiro se aproveitou desse exagero para pedir que tropas federais se instalassem em pontos estratégicos da cidade. Para ele, há dividendos políticos tanto para o governo federal quanto para o estadual nesta operação.

“O tráfico não acabou em nenhuma das UPPs. Portanto, não haveria razão muito grande para essa resistência porque o tráfico continua funcionando. Na verdade, o que acabou foi o controle armado da comunidade. Só que esse controle armado está sendo feito agora pela própria UPP, que mantém, portanto, de certa maneira, independentemente de suas intenções, a proteção ao tráfico, que agora não precisa mais se preocupar com isso”, criticou Misse. Mais do que operar como mediadora, a imprensa tem atuado como ator na área de segurança pública, na opinião de Michel Misse. “Nós temos a bandidagem, a polícia, e nós temos também a mídia. São os diferentes atores que compõem isto que é representado como a violência urbana”. Para ele, é preciso compreender melhor qual é a participação da mídia e o quanto ela tem contribuído para o controle social ou para a sensação de insegurança.

 

Retrato da violência

Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 717, exibido em 25/3/2014

O rebaixamento da nota do Brasil pela Standard & Poor’s foi manchete hoje [terça, 25/3] nos mais importantes diários do país. A avaliação é macroeconômica, certamente passageira, mas quando uma ONG mexicana coloca o país com mais municípios no ranking mundial da violência, estamos diante de uma situação que talvez só poderá ser corrigida em uma ou duas gerações. Não foi manchete porque estatísticas são frias, mas a brutal reação do crime organizado à política de pacificação das comunidades vulneráveis é uma ameaça concreta, palpável, imediata.

A contraofensiva da bandidagem veio atrasada, mas veio forte, está forte, vai continuar. E a polícia, despreparada, infiltrada, continua a atuar de forma tacanha e brutal: a morte da faxineira Cláudia da Silva Ferreira, atingida por um tiro e arrastada por um carro da polícia, resume tragicamente o novo capítulo da violência urbana.

A contraofensiva do crime não ocorre apenas no Rio de Janeiro ou São Paulo, o tal ranking indica 16 municípios brasileiros no grupo dos 50 mais violentos do mundo. Maceió é o quinto, Fortaleza o sétimo, Salvador o décimo terceiro. Você está chocado? Tem mais: o campo de batalha não se restringe ao Nordeste e ao Norte: Vitória é o décimo quarto do ranking e Belo Horizonte, o quadragésimo quarto.

O Estado brasileiro não admite esta ameaça à integridade do seu território e à segurança do seu povo. No início de abril, um contingente de 4 mil homens do Exército ocupará o estratégico Complexo da Maré, no Rio, e lá permanecerá o tempo necessário. O reforço dará às polícias militar e civil a oportunidade para corrigir-se, livrar-se da banda podre e retomar a iniciativa. Não se pode esquecer que o crime organizado é o filho bastardo dos políticos sem escrúpulos e das milícias paramilitares. E este aviltante casamento só pode consumar-se quando a mídia se distrai e esquece sua função de fiscalizar poderes, denunciar abusos e proteger a cidadania.

O papel da imprensa não é badalar eventos e promover celebridades. As máfias só prosperam onde a imprensa só se preocupa com a própria prosperidade.

Esta semana, imagens da auxiliar de serviços gerais Cláudia da Silva Ferreira chocaram o país. o jornal Extra divulgou as cenas no site que foram acessadas por milhares de internautas. 

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Lilia Diniz é jornalista