Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Descaso com a sociedade



‘O homem nasceu livre, e em todos os lugares ele está acorrentado.’ Jean-Jacques Rousseau


Não se pode falar em TV sem que se estabeleça uma necessidade de reflexão sobre sua amplitude em cenários tão individualizados, onde na grande parte das vezes acabamos por ver um pequeno grupo comandando a maior e grande parte do outro, e isso, por interesses individuais, deixando-os no conformismo a não ter que lutar pelo que se quer e o que se espera.


Para o filósofo Rousseau, a igualdade deveria vir em primeiro lugar, como necessidade a priori para se chegar à liberdade (ROUSSEAU, JEAN-JACQUES, 1973).


Um dos pontos nas leis de comunicação é sobre o controle do conteúdo televisivo. Segundo o artigo 221 do capítulo V da Constituição de 1988, que remete ao poder do Estado intervir quando a programação das emissoras de TV e rádio não atenderem aos seguintes princípios:




‘I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas: II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural-artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família’ (Constituição, 1988).


Relações amistosas entre as nações


A Constituição garante, portanto, o direito ao cidadão de se defender de programações que sejam contra o exposto no artigo 221, fornecendo meios legais para isso. Mas, não são todos que conhecem esse direito estabelecido por lei; a grande massa da população em Pernambuco, das classes D e E desconhecem esse direito, ou seja, não fazem uso dele, e com essas lacunas de controle social, as emissoras fazem o que querem fazer para ter o que querem.


Segundo Bernardo Toro, o que torna um sujeito cidadão ‘não é ter a carteira de identidade ou título de eleitor, mas a sua capacidade de gerar ou modificar a ordem social, ou seja, a sua capacidade de criar liberdade’ (TORO, 2005, p.20).


Aqui, mostra-se como é imprescindível a compreensão acerca do conceito de ‘direitos humanos’.




‘O conjunto dos Direitos Humanos Fundamentais visam garantir ao ser humano, entre outros, o respeito ao seu direito à vida, à liberdade, à igualdade e à dignidade; bem como ao pleno desenvolvimento da sua personalidade. Eles garantem a não ingerência do Estado na esfera individual, e consagram a dignidade humana. Sua proteção deve ser reconhecida positivamente pelos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais’ (DHNET, 2009, p.2)


A escritora Toledo (in Direitos Humanos no Cotidiano, 2001, p.19) considera que o ‘reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis são o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo’. Toledo (in Direitos Humanos no Cotidiano, 2001) diz ainda que é essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações.


Um direito para degradação de outros


Dentre os Direitos Humanos fundamentais, alguns são bastante trabalhados e destacados. O primeiro é a ‘imprescritibilidade’,que trata do fato dos direitos humanos fundamentais não se perderem pelo decurso de prazo, pois, são permanentes; o segundo é a ‘inalienabilidade’, que garante que os direitos humanos fundamentais não se transfiram de uma para outra pessoa, seja gratuitamente ou mediante pagamento; o terceiro é a ‘irrenunciabilidade’, que explica que os direitos humanos não são renunciáveis, não se pode exigir de ninguém que renuncie à vida nem que vá para prisão no lugar de outro em favor dessa pessoa; o quarto é a ‘inviolabilidade’, que diz que nenhuma lei é infraconstitucional, pois os direitos de outros não podem ser desrespeitados por nenhuma autoridade sob pena de responsabilização civil, administrativa e criminal.




‘O homem é um animal político que nasce num grupo social, a família, e aperfeiçoa sua própria natureza naquele grupo social maior, auto-suficiente por si mesmo, que é a polis; e, ao mesmo tempo, era necessário que se considerasse o indivíduo em si mesmo, fora de qualquer vínculo social e político, num estado, como o estado de natureza’ (BOBBIO, 1992, p.117).


A promoção e a proteção dos direitos humanos, além de estabelecidas na Constituição, são compromissos firmados internacionalmente pelo Brasil. Se esses direitos são agredidos, cabe ao Estado agir diante das violações, inclusive se forem praticadas pelos meios de comunicação.


Os Direitos Humanos dão aos indivíduos o acesso e o passaporte de reconhecimento como tais. Por meio dos direitos humanos, consolidam-se fundamentos e argumentos valiosos e determinantes para uma melhor vivência em sociedade por parte dos indivíduos.


Lucena (2004) em seu vídeo documentário Baixaria na TV explica que ‘o exercício da liberdade de expressão não pode violar outros direitos humanos’. Existem pessoas que se asseguram do direito de liberdade de expressão para degradação de outros direitos, estabelecidos como prioridade para uma organização social do bem coletivo.


Criança também tem direitos


Quando se trata do universo infantil no que diz respeito aos direitos humanos, o Art. 76 da lei 8.069, do Estatuto da Criança e do Adolescente (2001, p.18) diz que as ‘emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas’. O Estatuto (2001, p.37) prega ainda que ‘é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor’.


O Estatuto da Criança e do Adolescente é contra todo e qualquer movimento que promova atos vexatórios e de caráter discriminatório. Iguais ao Estatuto existem outras normas que defendem questões humanistas de caráter positivo para a sociedade. O art. 3º da Constituição Federal (1824, p.32) é claro e objetivo quando diz que se deve ‘promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra forma de discriminação’.


Na imprensa, existe uma lei que se põe contra todos e qualquer programa que use como promoção atos de apologia de algum fato criminoso ou de autores de crimes. Se isso acontecer, existe uma pena de detenção que vai de três meses a um ano ou multa de vinte salários mínimos da região.


A brutalidade na hora do almoço


Assim como em outros estados do Brasil, o descaso da mídia com a sociedade acontece de forma explícita em Pernambuco. A TV, que deveria dar prioridade a programas com finalidades educativas, tem perpassado outros caminhos, promovendo assustadoramente a depreciação dos meios.


Infelizmente, em um horário que é sagrado para grande parte da família pernambucana, ‘o almoço’, momento em que os indivíduos que integram determinada família, na condição de mãe, pai e filhos, têm recebido conteúdos impróprios, muita das vezes, essas pessoas estão consumindo cada vez mais fartamente a satirização das periferias e de forma explícita, aprendendo como promover a discriminação e o preconceito, momento esse podendo ser intitulado como ‘a brutalidade na hora do almoço’.


Entre tantos programas aqui em Pernambuco, dois se destacam no quesito referência de baixaria na TV e o descumprimento a lei. O primeiro é o Papeiro da Cinderela, interpretado pelo ator e apresentador Jaison Walace; o outro é o Bronca Pesada, apresentado pelo jornalista e apresentador Cardinot.


O Papeiro da Cinderela ,que vai ao ar de segunda à sexta das 11h30 às 12h, e no sábado às 13h, com a reprise da semana, na TV Jornal afiliada ao Sistema Brasileiro de Televisão – SBT.


Seu personagem incorpora uma Cinderela bastante pornográfica e desrespeitosa que surgiu de um grupo de amigos que se juntaram para brincar de fazer teatro, ganhando assim o nome de ‘Trupe do Barulho’. O grande reconhecimento foi dado ao personagem com a peça ‘Cinderela a história que sua mãe não contou’.


Os quadros do programa chegam a ferir grupos e classes – uma das mais ridicularizadas são as classes gays com brincadeiras de muito mau gosto e desrespeitosas. A satirização dos bairros é bastante vista no programa. Lugares como Brasília Teimosa e Coque, são alguns dos alvos desse personagem conhecidos em seu programa como os bairros do ‘pei, pei, pei’ (tiros). O programa que promove o preconceito desrespeita as leis e fere princípios sociais, está no ar há mais de sete anos, e qual a resposta para essa pergunta?


Já o Bronca Pesada, apresentado pelo então jornalista e apresentador Cardinot, vai ao ar de segunda a sexta-feira em dois horários, o primeiro, às 6h, da manhã e o segundo às 12h45 da tarde. O programa é recheado de violações aos direitos humanos, é o verdadeiro jornalismo policialesco e o que o apresentador sabe fazer de verdade é depreciar e humilhar os indivíduos que têm a necessidade de resoluções de alguns problemas. Em troca, o apresentador oferece muitas vezes comentários obscenos e desrespeitosos, se divertindo da desgraça alheia. O programa Bronca Pesada mostra da forma mais cruel a violência, os assassinatos acometido aqui no estado de Pernambuco é aberto para todo telespectador, inclusive as crianças sem nenhum aparate pedagógico.


O passado e o futuro estão ligados


É dessa forma que a TV tem se representado para a grande sociedade. Quando esses códigos de ética e leis não são respeitados, é aí que a sociedade fica exposta a qualquer programação, inclusive não permitindo haver um senso crítico nem de interação e de participação.


Edgar Rebouças explica que, da ONG TVer surgiu a base para o grupo Ética na TV, coordenado pelo então presidente da comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados de São Paulo, que lançou a campanha título deste capítulo (REBOUÇAS, EDGAR, 2003).


A campanha era uma das respostas da sociedade à queda da qualidade da programação da televisão comercial. ‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania’ surgiu com o foco mais específico de responsabilizar as empresas patrocinadoras dos programas considerados ofensivos à dignidade humana, denunciando-os como financiadores de ações contra a cidadania (REBOUÇAS, EDGAR, 2003).


A preocupação de muito desses autores ou especialistas, no Brasil como em Pernambuco, é saber como o conteúdo dos programas e da publicidade está influenciando as atitudes, crenças, comportamento e ações das crianças. Popper explica a respeito:




‘A televisão vive no presente, não respeita o passado e revela pouco interesse sobre o futuro. Ao crianças a viverem isolados do passado e do futuro, a televisão exerce uma influência desastrosa. Uma das funções principais da educação, tanto em casa como na escola, é mostrar como o passado e o futuro estão ligados, como o presente decorre dos acontecimentos passados e como o futuro se relaciona com ambos’ (POPPER,1995, p.47)


O capitalismo e o individualismo


Nos dias de hoje, o debate da mídia sobre a audiência é um dos temas mais importantes na sociedade. A briga por audiência e a luta pelo Ibope, não trazem nenhum benefício para a sociedade, embora, algumas emissoras de TV, se manifestem dizendo que a concorrência, é uma ação benéfica para a melhoria do setor.


Aqui em Pernambuco, é notória a semelhança na grade dos programas, em sua grande maioria, esses programas nivelam por baixaria, em uma corrida desenfreada para se obter o resultado, que parte para o lado economicamente falando, chegando muitas vezes a apelação. Para ter a estimativa de uma grande quantidade de espectadores que estão naquele exato momento assistindo a programas. Nelson Hoineff deixa claro quando diz que:




‘(…) pesquisas de audiência não indicam o que o espectador gostaria de ver; apenas registram para onde ele se inclinou em função do cardápio oferecido no instante da mediação. Aferem reações, os que nada tem a ver com expectativas, são limitadas pelo próprio conjunto das ofertas televisivas. O espectador deixa de perceber que o seu leque de possibilidades transcende o repertório em relação ao qual sua resposta está sendo medida’ (NELSON, HOINEFF, 2001).


É por essas e outras que é preciso despertar o sentimento de criticidade na sociedade pernambucana. O capitalismo está aí, e hoje ele é um dos grandes causadores da banalização e do alto nível de baixaria constituído pela TV pernambucana. Para o processo de comunicação ser realizado, é necessário que haja dois personagens no cenário proposto, o emissor (que passa a informação) e o receptor (que a recebe). Mas para que haja entendimento entre um indivíduo e o outro, é preciso que se estabeleça a mensagem, que vai ser o elemento crucial nesse processo.


No processo comunicacional, existem interferências e as mesmas podem ser chamadas de ruídos. A TV exerce um forte poder de conformação na vida do espectador e os conteúdos mal elaborados só fazem com que a sociedade esteja presa a esse círculo, onde os principais focos são o capitalismo e o individualismo, que fazem dos líderes dessas TVs, pessoas imbatíveis e sem consciência.

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Respectivamente, publicitário, militante dos movimentos sociais e estudante de especialização em Jornalismo e Crítica Cultural (UFPE); jornalista e militante dos movimentos sociais, especialização em Jornalismo e Crítica Cultural (UFPE); e jornalista, professora e militante dos movimentos sociais com especialização em Jornalismo e Crítica Cultural (UFPE)