Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O repórter e o gravador

Um repórter pode contestar as declarações do entrevistado?

Esta pergunta foi feita por um jornal americano e virou tema de debates – nos Estados Unidos, a propósito, a impressão é de que o consumidor de informações não quer que o repórter conteste declarações do entrevistado (ver, neste Observatório, “O repórter deve contestar um entrevistado que mente ou distorce fatos?“).

No entanto, discutir o que diz o entrevistado não é uma escolha do repórter: é obrigação. Não é para bater boca, nem para brigar; é, entretanto, essencial que o repórter faça objeções. De maneira educada, sim, mas firme e precisa. Se o entrevistado insistir em sua versão, que a entrevista continue, sem que o assunto se estenda interminavelmente; mas, na versão editada, na versão que vai para o público, deve constar não apenas a contestação, mas também a reação da fonte.

Ao fazer uma entrevista, o repórter tem um mandato, uma procuração do consumidor de informações. Deve buscar a verdade, em nome da opinião pública. É um profissional, não um gravador destinado apenas a reproduzir a fala da fonte.

Um caso interessantíssimo está acontecendo agora, no aniversário do assassínio do prefeito de Santo André, Celso Daniel. Um irmão de Celso Daniel diz que o hoje secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, informou à família que levava dinheiro de propinas arrecadadas na Prefeitura para o então presidente nacional do PT, José Dirceu. Carvalho mostrou documentos comprovando que o irmão do prefeito assassinado desmentiu, em juízo, ter recebido essas informações (e, aliás, por que teria dado a pessoas que, embora irmãos, não eram próximas do prefeito, informações a esse respeito?). O irmão se limitou a dizer que não havia desmentido nada – e a imprensa, apesar do documento judicial, aceitou numa boa sua negativa.

O debate do repórter com o entrevistado deve, claro, seguir as boas normas de lealdade. A contestação deve ser aberta – como a da âncora do SBT-Brasília, Neila Medeiros, que, revoltada com declarações inaceitáveis do entrevistado, criticou-o no ar, de maneira articulada, precisa, embora com indignação (ver “Jornalista defende trabalho da imprensa“). Mas não pode ser aquela contestação dissimulada, com caras e bocas, em que os apresentadores mostram ao público que não gostam do que ouvem, mas também não abrem se abrem à discussão. Debate franco, sim; muxoxos e ar de desagrado, não.

 

Luz nas trevas

Alguém roubou material de iluminação no valor de R$ 1 milhão de um dos cartões postais de São Paulo, a ponte estaiada “Octavio Frias de Oliveira”, aquela que aparece compondo o cenário de programas jornalísticos da Rede Globo. Todo mundo deu matéria, falando sobre os projetores de luz com LEDs, que mudam de cor, coisa bem moderna. Contaram até, nas reportagens, que esses projetores ficam em caixas metálicas bem protegidas etc., etc., etc.

Mas ninguém perguntou uma coisa importante (ou, se perguntou, a resposta não foi ao ar): cadê a polícia? Para roubar o equipamento, houve necessidade de gente, veículos, máquinas, barulho. Tudo numa boa, sem que ninguém percebesse? Vale a mesma pergunta de outro roubo famoso, a dos cofres de um banco na Avenida Paulista: os bandidos ficaram lá por horas, chegaram a pedir comida, as câmeras de segurança não mostravam nada e ninguém percebeu nem a movimentação nem as falhas na transmissão das imagens. Num famosíssimo conto policial, a principal pista foi o silêncio do cachorro: por que é que não latiu?

Por que é que não houve ninguém que ouvisse o barulho, que notasse a movimentação, que percebesse a inatividade das câmeras? Por que não é esta inação o ponto de partida das reportagens sobre o assunto?

 

Modificando o idioma

Está no dicionário Caldas Aulete:

“Higiene: 1 Med. Parte da medicina que trata dos diversos meios de conservar a saúde e prevenir doenças. sf. 2 Conjunto dos princípios e práticas que conduzem a boas condições de saúde e ao bem-estar: Não há higiene nesta casa. 3 Asseio do corpo ou de parte dele (higiene oral).”

Continuemos no Caldas Aulete:

“Higienista: s2g. 1 Med. Profissional especializado em higiene; sanitarista.”

São conceitos sempre positivos. Alguém poderia explicar por que o noticiário sobre problemas da cidade usa “higiene” e “higienista” como conceitos negativos? Seria preciso mudar o nome da reputadíssima e tradicional Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo, ou até mesmo fechá-la?

George Orwell, em 1984, trata com brilho da mudança do sentido das palavras, para tornar certas ideias aceitáveis. Será isto que ocorre agora, em especial quando há ações (certas ou erradas, a discussão é outra) contra o tráfico e o crime?

 

Questão de opção

A marroquina Amiri Chaimaa, 22 anos, veio visitar o Brasil em outubro de 2010. Uma de suas malas, com 7 kg (conforme o ticket de bagagem), se extraviou no trajeto Casablanca-Rio. Encontraram uma maleta em Brasília e a encaminharam a Amiri. Examinada em Guarulhos, a maleta continha 4,7 kg de cocaína e pesava 12,5 kg.

Amiri mostrou o ticket comprovando que sua maleta tinha 7 kg; não adiantou. Foi presa e ficou 14 meses na Penitenciária de Santana, até ser absolvida (com a concordância do Ministério Público). Por que demorou o julgamento? Porque um dos agentes federais que participaram da prisão está há meses em licença médica. Agora, as perguntas:

1.Digamos que o agente federal ficasse alguns anos em licença médica. Há doenças em que o tempo de tratamento é muito, muito longo. Ela ficaria presa até que ele ficasse bom? Por que esperar para julgá-la?

2.Um promotor disse a jornais de São Paulo que está alerta para examinar eventuais negócios do empresário Kia Joorabchian com clubes brasileiros de futebol. Há algum problema legal com ele? Não, não há – mas é preciso prevenir, diz o promotor. Outro promotor participa ativamente das eleições no Corinthians. Outro promotor não perde o Big Brother Brasil. E nenhum promotor estava prestando atenção na moça presa sem motivo. Se o Ministério Público estava tão convicto da inocência da jovem que pediu sua absolvição, por que não agiu com mais rapidez, para evitar tanto sofrimento?

3.A jovem marroquina recorreu ou não à imprensa? Se recorreu e não foi atendida, é preciso que alguém se explique. Se nem recorreu, é ainda pior: significa que a imprensa nem está mais sendo considerada como defensora da liberdade individual – talvez por excesso de gentileza com acusadores e magistrados que se orgulham do alto índice de condenações.

4.A Polícia Federal, procurada, não se manifestou sobre a prisão de Amiri.

Só isso? Tomam de uma jovem mais de um ano de vida, ignoram seus pedidos, a enterram numa cadeia e não se manifestam? E a imprensa, aceita?

Vale, no mínimo, uma reportagem grande, mostrando como a jovem marroquina teve seus direitos violados e ignorados, e quem são os responsáveis. Se ela foi para a cadeia, há documentos assinados, papéis, nomes, cargos. O que não pode é ficar por isso mesmo, pedir desculpas à moça e dar-lhe tchauzinho.

 

Brincando com a lei

A lei brasileira determina que certos atos de concessionárias de serviços públicos sejam amplamente divulgados – por exemplo, modificações nos contratos, mesmo que por motivos de força maior. Como é que as empresas escapam à lei? Cumprindo-a – mas do seu jeito. Eis, por exemplo, um anúncio da Vivo, informando que uma determinada empresa não poderá usar sua rede (e os consumidores, naturalmente, vão ficar sem sinal até que o caso seja resolvido). O anúncio, em corpo minúsculo, de leitura dificílima, mesmo com lupa, traz o informativo título “COMUNICADO PÚBLICO”.

Texto:

“A Vivo, em cumprimento à alínea “f” do Despacho nº 6409/2011/PBCPS/PBCP/SBP, proferido pela Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel, em 12 de agosto de 2011, notifica, substitutivamente, que: A HOJE vem a público informar que, a partir do dia 20/12/2011, as chamadas originadas na sua rede e destinadas à rede da Vivo estão temporariamente suspensas por motivos de ordem regulatória e serão restabelecidas tão logo sejam dirimidos os problemas identificados. A Vivo informa que é direito dos usuários solicitarem a portabilidade dos serviços para outra operadora”.

Não é um primor de clareza e transparência de informação?

 

O que pode dar errado…

Bem em cima do naufrágio do navio italiano, a reportagem de capa de uma das revistas de mais prestígio do Brasil traz ampla matéria sobre iates.

 

…dá errado

E num grande jornal sueco, o Dagens Nyheter, ao lado da página sobre o naufrágio, com a manchete “Sobe o número de mortos”, a empresa Resecity anuncia em pagina inteira, com fotos coloridas, suas opções de cruzeiros marítimos.

 

Feliz aniversário

O SESC da Vila Mariana, em São Paulo, comemora o aniversário da cidade, de 25 de janeiro a 1º de abril, com doces finos: a exposição Roteiro Musical da Cidade de São Paulo, coordenada pelo jornalista, especialista em música e contador de boas histórias Assis Ângelo. Muita música brasileira, encontros com músicos e compositores, a cada dia uma atração diferente, sempre com a apresentação do próprio Assis Ângelo e de Débora Pill, sempre de graça.

 

Como…

Da internet, que nunca nos falha:

** “Técnico da base do Londrina morre após jantar com Flamengo”

Comida estragada? Não, nada disso: depois do jantar, ele pegou o carro e morreu num acidente.

 

…é…

De um grande jornal impresso, sobre a geografia da Arábia Saudita:

** “Jidá, à beira do Mar Morto (…)”

O Mar Morto fica entre Jordânia e Israel, longe da Arábia Saudita. Jidá fica à beira-mar, só que do Mar Vermelho.

 

…mesmo?

De um portal noticioso:

** “Adriana Lima usa dois vestidos sensuais em evento na Suíça”

Os dois vestidos são comportadíssimos. Não aparece nada. Mais um pouco de pano e seriam aceitáveis até no Afeganistão.

 

Pois…

Os portais de frufru, a propósito, estão cada vez mais moralistas. Em outro:

** “Miley Cyrus é traída por transparência e deixa seios à mostra”

A moça estava sem sutiã, com blusa preta. Bastava jogar um holofote nela, daqueles de luz branca bem forte, e olhar com cuidado que os seios apareceriam mesmo.

 

…é

De um portal de notícias esportivas:

** “Esforço por meia pode demitir técnico”.

Simples, simples: Vanderlei Luxemburgo não quer Ronaldinho Gaúcho no seu time, e gostaria de afastá-lo. O meia Ronaldinho Gaúcho não quer jogar com Vanderlei de técnico, e faz força para que seja demitido.

 

Mundo, mundo

Enquanto o pessoal da fofoca se preocupa com o BBB, esquece os temas mais românticos. O jovem Adriano, volante do Santos, no começo de uma entrevista sobre a reforma de seu contrato, pediu em casamento a repórter Fernanda Tavares, da TV Tribuna, com aliança de noivado e tudo. Ao que tudo indica, a repórter não esperava um pedido de casamento em público; mas aceitou, colocou o anel de noivado e deu um beijo em Adriano.

A imprensa comparou o caso ao de Casillas, goleiro do Real Madrid e da seleção espanhola, que beijou a repórter Sara Carbonero ao vivo, logo depois de ganhar a Copa. Mas o caso foi diferente: ali, todos sabiam que Sara Carbonero e Casillas namoravam firme. O beijo foi só uma grande manifestação de carinho. Já Adriano, pelo que se saiba, planejou sozinho o evento inteiro, surpreendendo a namorada.

 

E eu com isso?

Quer um pouco de BBB? Então vá lá (mas bem pouquinho, que o caso já foi longe demais, envolvendo emissoras concorrentes e contribuindo até para o congestionamento dos tribunais):

** “Durante a tarde, Monique relembra sua primeira vez”

Seria a tarde inteira?

Mas mudemos de assunto:

** “Cameron Diaz exibe cabelo curto”

** “Murilo Benício deixa restaurante acompanhado dos filhos e da namorada”

** “Matt Damon se diverte em tobogã no Caribe”

** “Justus e Ticiane passam férias com Rafaella em Miami”

** “Grávida, Luana exibe barriga em caminhada”

** “Namorado de Jaque Khury borrifa bronzeador na Panicat no Rio”

** “Henri Castelli brinca com o filho na praia”

** “Caio Castro faz ensaio fotográfico em praia do Rio”

** “Altas temperaturas aumentam o movimento nas praias”

 

O grande título

A briga de Ronaldinho Gaúcho com o técnico Vanderlei Luxemburgo rende: o treinador mobilizou a segurança do clube, pegou as imagens das câmeras do hotel e tem certeza de que o jogador levou uma mulher para a concentração. A resposta de Ronaldinho Gaúcho está num grande título:

** “Ronaldinho diz que errou andar e acabou flagrado com mulher em hotel”

Dá para imaginar a cena: “Mulher? Que mulher? Tem uma mulher aí? Tira essa mulher de baixo de mim!”

Mas o grande título é outro – um que exige certa compreensão de como as coisas acontecem em nosso país:

** “Em 2011, o BNDES ajudou a mudar a vida de muita gente”

Pena que não tenha sido a sua, caro leitor. Nem a deste colunista.

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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]