Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mídia, MP e a saúde das gentes

O Ministério Público, tradicionalmente atuante nas áreas criminal e de improbidade, preocupa-se cada vez mais com outro segmento: a saúde. A demanda tem crescido tanto que o MP do estado de São Paulo planeja criar uma promotoria para atendê-lo.

Em 2004, diversas ações envolvendo esse setor já foram instauradas: parte pelo Grupo de Atuação Especial da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor (Gaesp), parte por promotorias que às vezes agem em assuntos de saúde, como a Criminal e a do Consumidor.

Algumas dessas ações originaram-se de reportagens publicadas na imprensa. Por exemplo, a solicitação de indiciamento por homicídio culposo do médico responsável pela assistência ao torcedor corintiano Marcos Gabriel Cardoso Soares, em 2 de maio, no pronto-socorro municipal da Barra Funda, na capital. Outra: as ações para apurar irregularidades no atendimento prestado a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) e a conveniados/particulares – a chamada ‘dupla porta’ – nos complexos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, e do Hospital São Paulo, ligado à Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo.

‘O MP quer ampliar a atuação na saúde, e a mídia pode nos ajudar, inclusive orientando o público a nos procurar’, diz Rodrigo César Rebello Pinho, procurador-geral de Justiça de São Paulo. A seguir, sua entrevista ao Observatório, concedida na sede do MP paulista, da qual também participou o promotor Reynaldo Mapelli Júnior, do Gaesp.

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Saúde pública é caso de polícia no Brasil?

Rodrigo César Rebello Pinho – É caso de investimento público. O Estado precisa investir mais para cumprir a sua obrigação. Saúde pública é caso de cidadania.

Como o senhor vê a atuação da mídia nas questões de saúde?

R.C.R.P – É extremamente importante numa sociedade democrática. Tanto que notícia veiculada pela imprensa é uma das principais formas de instauração de procedimentos no MP de São Paulo – além, claro, das denúncias que a população às vezes nos traz. Ao tomar conhecimento de atendimentos inadequados prestados pelos serviços de saúde ou de remédios com problemas, por exemplo, o jornalista tem a obrigação de apurar os fatos e denunciá-los à sociedade, até porque nem sempre as autoridades têm interesse em torná-los públicos.

Basta a denúncia ser publicada para o MP instaurar a ação?

R.C.R.P – Não. O MP tem critérios próprios de avaliação. Primeiro, se a matéria publicada é consistente ou não. Segundo, se o fato é efetivamente prioritário à saúde do povo. Em geral, quando a notícia preenche esses requisitos, instauramos procedimento para apurar o fato. Agora, abrir inquérito não significa instaurar ação civil pública. Às vezes, o próprio órgão público, ao saber da abertura do procedimento, já providencia a solução do caso. E, aí, claro, arquivamos o expediente.

Que reportagens recentes levaram o MP a abrir inquéritos?

R.C.R.P – Por exemplo, as referentes ao torcedor corintiano mortalmente agredido por integrantes da torcida do Palmeiras. O médico que prestou assistência não constatou traumatismo craniano grave em andamento e, ainda, liberou o jovem de 16 anos sem a presença do representante legal ou qualquer tipo de acompanhamento ou observação. O promotor Ricardo Antonio Andreucci, da Promotoria Criminal, pediu então indiciamento do médico por homicídio culposo. O promotor tomou conhecimento do caso por reportagens que ilustram o inquérito. Outro exemplo: as duas ações para apurar denúncia veiculada pelo site NoMínimo (http://nominimo.ibest.com.br) sobre o sistema ‘dupla porta’ nos complexos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e no Hospital São Paulo, ligado à Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo.

Por que o MP instaurou essas últimas ações?

R.C.R.P – O MP é claramente contra a ‘dupla porta’. Ela fere o princípio da isonomia. Em instituições que recebem recursos públicos, é inconcebível que se atenda imediatamente quem paga, enquanto o paciente SUS é obrigado a encarar meses de fila de espera. O atendimento diferenciado caracteriza privilégio e transgride a Constituição Federal e a Lei estadual 10.241. E os fatos relatados pela reportagem do NoMínimo em relação à ‘dupla porta’ são graves. Um deles, a indisponibilidade de exames para pacientes SUS e a sua realização para conveniados e particulares. Por isso, foi aberto inquérito civil contra o Hospital São Paulo, e inquérito administrativo contra o Hospital das Clínicas. As investigações já começaram, e estão a cargo dos promotores Reynaldo Mapelli Júnior e José Paulo França Piva, do Gaesp.

Qual a diferença entre inquérito civil e administrativo?

Reynaldo Mapelli Júnior – Tecnicamente, nenhuma. O inquérito civil é procedimento investigativo como o inquérito administrativo. No caso do Hospital das Clínicas, como havia inquérito civil anterior, optamos pelo procedimento administrativo, para que a direção explicasse as irregularidades relatadas. No caso do Hospital São Paulo, foi instaurado inquérito civil para averiguar as irregularidades divulgadas e ainda tratar da ‘dupla porta’. Por causa da ‘dupla porta’, também temos inquérito civil contra o Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, da Secretaria de Estado da Saúde.

Uma crítica freqüente ao MP é a de que vive abrindo ações e não consegue punições. Isso procede para a área de saúde?

R.M.J. – Não. Desde 1999, quando o Gaesp foi criado, temos obtido diversas vitórias. Acontece que uma série de problemas é resolvida pela via administrativa. Por exemplo, às vezes o público nos procura por falta de determinado medicamento na rede pública. Aí, o MP entra em contato com as secretarias de Saúde do estado ou do município e o problema se resolve. Há irregularidades também sanadas durante a fase de inquérito civil. Em certos casos, apenas a visita do MP a determinado hospital para averiguação já melhora a situação. Quando isso não acontece, entramos com as ações civis públicas. Só que, entre a propositura e a decisão judicial, se passam dois, três anos. Resultado: no final, alguns processos são julgados improcedentes, pois as irregularidades denunciadas foram corrigidas ao longo do período. De qualquer maneira, nosso objetivo foi alcançado.

O senhor poderia citar algumas dessas vitórias?

R.M.J. – Uma delas: obrigar o estado de São Paulo a dar tratamento especializado às crianças autistas. O estado queria fornecer apenas o atendimento padrão aos portadores de distúrbios psiquiátricos. Porém, existe tratamento específico para autistas, e o estado está custeando-o em clínicas particulares, enquanto não tiver estrutura adequada. Outra: obrigar o Hospital das Clínicas de São Paulo a fornecer os medicamentos básicos prescritos pelos médicos do complexo aos pacientes SUS. A ação decorreu da falta crônica deles na farmácia do HC. Conseguimos também condenar médicos que recebiam do SUS e exigiam pagamento por fora dos pacientes. Outro resultado positivo: as liminares concedidas para impedir os aumentos abusivos e ilegais dos planos de saúde contratados antes de 1999. Para o MP, os usuários têm direito de pagar as mensalidades conforme o aumento previsto na legislação.

Imprensa, órgãos de defesa do consumidor e MP chiaram legitimamente contra os aumentos escorchantes dos planos de saúde, que juntos atendem cerca de 35 milhões de brasileiros. Não se vê, entretanto, as mesmas instituições defenderem com igual fervor os direitos dos 135 milhões de usuários do SUS.

Rodrigo César Rebello Pinho – No que diz respeito ao MP de São Paulo, temos feito o que está ao nosso alcance.

A Constituição brasileira diz que saúde é direito do cidadão e dever do Estado, e cabe ao MP exigir dos poderes e serviços públicos que isso seja cumprido. Como o senhor se sente vendo as filas de espera nos serviços públicos de saúde?

R.C.R.P – Mal, é claro, já que o acesso à saúde é crucial. Mas, onde há brechas para forçar o Estado a satisfazer o direito do cidadão, o MP tem tomado as medidas cabíveis nas esferas civil e criminal. A prova é o crescente número de ações para melhorar o funcionamento dos hospitais públicos, garantir o fornecimento de remédios em falta, forçar o Estado a aplicar devidamente os recursos, apurar os desvios de dinheiro da área da saúde. A demanda é tamanha que planejamos transformar o Gaesp em promotoria, ou seja, criar a Promotoria da Saúde.

Na prática, qual é a diferença?

R.C.R.P – Saúde e educação faziam parte da Promotoria da Cidadania. Mas, ela acabou de tal forma absorvida pelos atos de improbidade que, para atender essas áreas, tivemos de criar grupos especializados. Agora, a tendência é transformar os grupos em promotorias. A vantagem é que os seus integrantes não são designados pelo procurador-geral, mas aprovados por concurso, tendo estabilidade e autonomia maiores.

De que maneira a mídia poderia ajudar o MP a ampliar a atuação nas questões de saúde?

Reynaldo Mapelli Júnior – Desde que comecei a trabalhar no Gaesp, chama atenção o fato de que quando as pessoas são mal atendidas, alguém sempre diz a elas: ‘Você está reclamando do quê? Isso aqui é SUS. É gratuito’. É como se elas não pagassem impostos e não tivessem direito de exigir assistência digna do Estado. E nisso a mídia pode nos ajudar muito, esclarecendo a população. Quanto mais o cidadão tiver noção dos seus direitos à saúde, maior será a atuação do MP na área.

Mas, freqüentemente os cidadãos desconhecem que o MP atua nas questões de saúde, certo?

Rodrigo César Rebello Pinho – Correto. E a imprensa ajudaria muito se informasse à população que: 1) O MP dispõe de promotores de Justiça em todas as cidades para atender a área de saúde; 2) as pessoas devem denunciar ao MP, por exemplo: remédios em falta nos postos de saúde, mau atendimento e falta de equipamentos nos hospitais públicos, omissão de socorro a pacientes em situação de risco, suspeitas de erro médico que levam à morte ou à lesão do paciente. É atribuição do MP propor ação penal por homicídio ou lesão corporal culposa em caso de erro médico. Para isso, é importante que as pessoas procurem o MP e tragam as informações.

Mas, pela Constituição, o MP não atua na defesa de interesses individuais, exceto em casos de idosos, crianças, jovens e órfãos. Como ficam as demais pessoas que dependem do SUS e não pertencem a ONGs ou a sociedades de amigos de bairro? ‘Só Deus mesmo!’, como ouço freqüentemente as Marias e os Joãos dizerem?

R.C.R.P – A Assistência Judiciária do estado é que atua na defesa do interesse individual. Só que, na prática, o MP acaba agindo também.

De que maneira?

R.C.R.P – Suponhamos que alguém nos traga uma reclamação. De imediato, telefonamos ou encaminhamos ofício para a instituição envolvida na tentativa de resolver a situação. Também orientamos a pessoa sobre o que fazer. Além disso, em geral, o problema não é exclusivamente dela, mas de uma determinada coletividade. Nesse caso, a partir de denúncias individuais, o MP, após investigação, tem instaurado ações coletivas contra o estado ou o município.

Quer dizer que se a dona Maria ou o seu João tiverem reclamação na área de saúde e procurarem o MP, eles serão atendidos?

R.C.R.P – Sem dúvida. Diariamente, damos esse atendimento individual. A obrigação do promotor de Justiça é atender o público. Logo, a divulgação pela imprensa desse papel da instituição vai ajudar o MP a melhorar o atendimento à população nas questões de saúde. Em bom português: queremos o público, sim, e a mídia pode nos ajudar.

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Jornalista