Monday, 13 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O espírito da multidão

O espírito do senso comum costuma buscar as soluções mais simplórias para problemas complexos. Sempre que temos acesso aos meios de comunicação e tomamos conhecimento de notícias que nos chocam, parece que somos impulsionados a arranjar respostas para tudo. Uma espécie de intolerância se apossa de nós e, às vezes, desejamos a morte àqueles que aparecem acusados de cometer crimes bárbaros, por exemplo.

Fui levado mais uma vez a refletir sobre essas questões ao assistir ao programa Linha Direta Justiça, da Rede Globo, na semana passada, em que foi mostrado o caso da Chacina da Candelária. Três homens, acusados de cometerem os crimes, ficaram presos, sob custódia, durante três anos. Às vésperas do júri, o caso teve uma reviravolta: apareceram os verdadeiros assassinos. Apenas um dos custodiados teve participação na chacina, os outros foram absolvidos por serem inocentes. Outros, que durante aqueles três anos estiveram soltos, foram condenados, por serem os verdadeiros culpados. Ora, por que digo isso? Porque, pelo juízo do senso comum, aqueles inocentes já estariam condenados e, o pior: para alguns, já deveriam estar mortos, não fariam mesmo falta…

Vou contar uma história: certo dia fui fazer uma reportagem na delegacia, onde um adolescente havia sido apreendido (o termo é esse mesmo: sendo inimputável, é apreendido, e não preso) acusado de matar três pessoas. Nos informaram que era confesso. Não filmamos o adolescente, claro, mas gravamos entrevista com ele, que negava as mortes. A reportagem foi ao ar. Ouvi muita gente reclamando punição e até a pena capital para aquele ‘desgraçado’, por já, tão cedo, ser um assassino e, conseqüentemente, irrecuperável. Três dias depois, tivemos que dar a informação de que aquele adolescente nada tinha a ver com a acusação a ele imputada – os verdadeiros assassinos foram capturados.

Até onde vai o direito da sociedade de condenar, por antecedência, alguém que está sendo acusado de um ilícito penal, sem ter ao menos uma sentença contrária? Como já disse, as informações dos meios de comunicação são o material que temos para tal julgamento, e não nos são necessárias provas: apenas o fato de serem suspeitos já é o bastante. Um dos princípios do Estado Democrático de Direito é a Presunção de Inocência, ou seja, todos são inocentes até que se prove o contrário, e o indivíduo, pelo nosso ordenamento jurídico, só pode ser considerado culpado depois de sentença irrecorrível.

‘Crucifica! Crucifica!’

Devemos ter cuidado com a influência da mídia em relação a notícias policiais, principalmente em relação à interpretação que é dada por pessoas que comandam programas sensacionalistas. Reclamam punição severa para quem não teve, ao menos, a chance de se defender. Ainda bem que tais programas estão fora de moda, o mundo-cão já não rende tanta audiência.

O respeito à Presunção de Inocência é também uma questão de humanidade. Alguém acusado de algo que não cometeu e que tem sua imagem linchada perante a opinião pública dificilmente conseguirá reparação de tamanho dano. Os inocentes da Candelária, que foram execrados pela opinião pública, levarão esta cicatriz para sempre em suas almas e, enquanto viverem, sentirão a dor de terem pago por algo que não cometeram. Bandidos devem ser punidos, mas é preferível 10 bandidos soltos a um inocente preso.

Os inocentes da Candelária lutam, na Justiça, por indenização do Estado, pelo tempo em que ficaram presos indevidamente. E o linchamento moral? Existe algum valor que possa compensar tal dano? Lembremo-nos das palavras de Platão, ‘A verossimilhança tende a dominar o espírito da multidão, ou seja, as pessoas aceitam mais o que parece verdadeiro do que aquilo que realmente é verdadeiro’, para que não sejamos injustos em nossos julgamentos, levianos em nosso senso de justiça e não nos igualemos à mesma multidão que há cerca de dois mil anos gritava: ‘Crucifica! Crucifica!’

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Radialista, apresentador e repórter de telejornal (TV Sudoeste), estudante de Direito, Vitória da Conquista, BA