Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Oba-oba fora de hora e de lugar

Houve um grande oba-oba da imprensa, em benefício do deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) e do Supremo Tribunal Federal, especialmente do ministro Carlos Ayres Britto, por conta do pedido de liminar e seu deferimento para sustar a aplicabilidade de preceitos da Lei de Imprensa [Med. Caut. em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130-7, relator : min. Carlos Ayres Britto, argüente: Partido Democrático Trabalhista – PDT].


Sem ler a decisão, supus que havia grande tolice na divulgação porque os vários dispositivos da Lei de Imprensa, que são incompatíveis com a Constituição, já não são aplicados faz tempo. O Poder Judiciário já cuidou de aniquilar os trechos da Lei de Imprensa não recebidos pela nova ordem constitucional, e faz isso desde que promulgada a Constituição, há 20 anos. Lendo a decisão liminar do STF, percebo que, mais do que inócua, ela é preocupante.


Para entender de que falamos, é preciso que o leigo saiba algumas coisas sobre o convívio entre leis diferentes. O mais importante é saber que as leis anteriores à Constituição de 1988 só valem, após a promulgação desta, na medida em que sejam compatíveis com a própria Constituição; cada artigo do Código Tributário, do Código Penal, da Lei de Imprensa e todas as demais leis anteriores a 1988, só vale na medida em que não conflite com a Constituição. Dispositivos que conflitem com a Constituição são chamados de ‘não-recebidos’ na nova ordem constitucional. E são muitos. São milhares!


Ação desnecessária


Além disso, é preciso que o leigo se dê conta de que leis mais novas revogam as mais velhas. Quando o legislador aprova uma nova lei sobre um determinado tema (jornalismo, por exemplo), derroga as disposições em contrário, mesmo que não o diga expressamente.


Por isso, a propositura da ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) sobre a Lei de Imprensa se reveste de um caráter de grande inutilidade: a ação discute dispositivos que ninguém aplica, seja por que não-recebidos pela nova ordem constitucional, seja porque superados pela edição de leis mais recentes que derrogaram as leis anteriores.


Não era preciso, portanto, propor, em 2008, uma ADPF para descobrir que a Lei de Imprensa não se aplica aos espetáculos e diversões públicas (par. 2º do art. 1º da Lei de Imprensa). Tampouco era preciso julgar que estes espetáculos não estão sujeitos à censura. Até as pedras sabem que a Constituição de 1988 não recebeu tais restrições.


Discussões superadas


O mesmo se diga quanto à chamada indenização tarifada, aquela indenização para a qual a Lei de Imprensa prevê tetos de indenização em favor de eventuais vítimas. Os arts. 51 e 52 da Lei de Imprensa já não são aplicados há anos, em detrimento dos veículos de comunicação e em benefício dos ofendidos. Não precisava o STF se pronunciar sobre este tema, já superado.


Tampouco era necessário propor, nos vinte anos da Constituição de 1988, uma ADPF para obter o reconhecimento de que não há proibição de publicação nem há possibilidade de apreensão de meios de comunicação (arts. 60 a 63 da Lei de Imprensa).


Nenhum desses artigos da Lei de Imprensa foi recebido pela Constituição Federal, nem tem sido aplicado qualquer deles pela Justiça. Não era preciso uma liminar para reconhecer direito incontroverso, velho e óbvio.


A bisonha possibilidade de o ministro da Justiça mandar apreender jornais e revistas (art. 63 da Lei de Imprensa) não era adotada mesmo antes da Constituição. Suspender esse dispositivo (como pediu o deputado Miro Teixeira e fez o ministro Carlos Ayres Britto) é como julgar inconstitucional a escravatura ou a proibição do voto feminino: o Brasil já superou tais discussões e não tem cabimento discutir o tema, a esta altura. Mais do que desnecessária a ADPF, ela é nefasta, na medida em que ressuscita uma discussão morta e dá vida ao argumento superado pela história da democracia.


Dispositivos inconstitucionais


A inconstitucionalidade dos artigos referentes aos crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação), cometidos por meio da imprensa (arts. 20 a 24 da Lei de Imprensa), além de questionável, pouco mudou o cenário da liberdade de expressão. Primeiro, porque continua sendo crime caluniar, injuriar ou difamar em meio de comunicação. Segundo, porque as penas mínimas são idênticas e as penas máximas (maiores na Lei de Imprensa do que no Código Penal) tenderão a ser aplicadas sempre pelo máximo, porque a Justiça entende que a ofensa à honra, com ampla divulgação na imprensa, reclamará punição maior do que uma ofensa feita na privacidade do convívio social. A proteção que a Lei de Imprensa dá às autoridades públicas (nos arts. 20 a 24 referidos) fica suprimida, o que terá vantagens e desvantagens que o tempo demonstrará.


Já a inconstitucionalidade dos dispositivos meramente processuais da Lei de Imprensa é amplamente discutível, primeiro porque seu acolhimento veio desamparado de qualquer fundamento na decisão do ministro Carlos Ayres Britto; segundo, porque o estabelecimento de prazos é justamente a missão constitucional da Lei processual. Mas tampouco nesse tópico a decisão liminar na ADPF muda a cena da liberdade de expressão porque a Justiça já não as aplicava – caso do art. 57 e seus pars. 3º (prazo de cinco dias para contestar a ação judicial) e 6º (exigência de depósito para poder apelar à instância superior) e do art . 56 (prazo decadencial de 3 meses para propor ação de indenização).


Confusão inconsistente


Mas há um ponto, passado despercebido na cobertura jornalística, que diz respeito às restrições constitucionais contra o capital estrangeiro nas empresas jornalísticas. A liminar julgou inconstitucionais essas restrições impostas pela Lei de Imprensa, quando a Constituição – muito claramente – impõe restrições ao capital estrangeiro na mídia.


A liminar nesta ADPF implica em que as agências estrangeiras de notícias podem funcionar no Brasil sem registro (par. 2º do art. 2º da Lei de Imprensa); as brasileiras devem ser registradas (Art. 8º da Lei de Imprensa); as estrangeiras, não. É um absurdo que ao STF cabe rapidamente corrigir.


Uma leitura literal (e inconstitucional) da decisão do ministro Carlos Ayres Britto e da Lei de Imprensa levará um incauto a supor que a suspensão dos arts. 3º a 6º da Lei de Imprensa, determinada pela liminar na ADPF, implica em que é permitida a propriedade de empresas jornalísticas a estrangeiros e a sociedades por ações ao portador. Mais ainda, o incauto acreditará que estrangeiros poderão ser sócios de empresas jornalísticas. Pior, seria possível supor que a responsabilidade e a orientação intelectual e administrativa das empresas jornalísticas poderão caber a empresas ou organizações estrangeiras. Tudo porque o ministro Britto suspendeu os arts. 3º a 6º da Lei de Imprensa, onde as restrições ao capital estrangeiro estavam regulamentadas. Ao julgar inconstitucionais as restrições ao capital estrangeiro, a decisão liminar do STF criou confusão desnecessária e inconsistente.


Liberdade de expressão


O assunto é regido pelo art. 222 da Constituição e pela Lei Federal nº 10.610/2002, mas também (e parcialmente) pela Lei de Imprensa. A liminar concedida na ADPF acaba por dar foros de constitucionalidade ao controle da mídia pelo capital estrangeiro, o que é explicitamente proibido pela Constituição. É um rematado absurdo.


Cabe ao STF cassar a liminar nos pontos em que, a pretexto de proteger a liberdade de expressão, a liminar deferida pelo ministro Carlos Ayres Britto brigou não apenas com a própria liberdade de expressão, mas também com a Constituição.


Uma lei nova deve tratar do tema, de modo que cabe ao Congresso Nacional o próximo passo. Enquanto isso, os juízes de primeira instância (que a liminar não respeitou, ao impor a eles condutas e entendimentos que eles já adotavam) saberão cumprir a Constituição com cuidado; quando não o fizerem, caberá recurso, até ao próprio STF. Espera-se também que o assunto seja tratado com foco na defesa da liberdade de expressão: cada vitória liberdade de expressão sobre o arbítrio deve ser comemorada não apenas quando o tema é tratado em ação excepcional, perante o Supremo Tribunal Federal, mas sim – e principalmente – quando os juizes, na primeira instância, na segunda instância e nos julgamentos do próprio STF e do STJ derrubarem as barreiras contra a liberdade de expressão.

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Advogado, São Paulo, SP