Sunday, 12 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Plínio Bortolotti

‘Se os moradores de Fortaleza dependessem apenas dos meios de comunicação para saber que a funcionária pública Célia Marilac de Oliveira foi assassinada pelo ex-marido dentro do shopping Benfica, no bairro do mesmo nome, ficariam sem a informação ou teriam dificuldade para obtê-la na sua integridade. Nenhum dos três jornais da cidade, incluindo este (nem os programas de televisão), publicou o nome do estabelecimento no qual aconteceu o crime, o que poderia sugerir uma ação coordenada. Na presença de dezenas de testemunhas, ao meio-dia da terça-feira, o veterinário Márcio Alves desferiu duas facadas mortais na mulher de quem ele foi marido por 16 anos. Célia Marilac tinha 47 anos e trabalhava na pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Na quarta-feira, precisei ler os três jornais para juntar as pistas e descobrir onde se dera o crime. O POVO registra que o assassinato foi em ‘um shopping de Fortaleza’; para o Diário do Nordeste, ‘em um shopping center situado na zona central da Capital’, localizado ‘a apenas um quarteirão’ da UFC; no O Estado, anota-se que foi ‘no bairro Benfica’. Portanto, quem conhece Fortaleza, com a leitura dos três jornais, poderia chegar à conclusão de que o fato se dera no shopping Benfica. Foi o caminho que percorri, antes de obter a confirmação definitiva do local do crime.

Questionei o motivo de o nome do shopping, um local de acesso público, ter sido omitido na notícia sobre o crime. O diretor de Redação do O POVO, Marcos Tardin, responde que ‘o princípio motivador’ foi ‘não contribuir para o prejuízo da imagem de quem também é, de certa forma, vítima’. E que o objetivo seria ‘preservar o nome de estabelecimentos comerciais ou empresas que não tenham qualquer responsabilidade ou culpa por uma ação dolosa ocorrida em suas dependências. Até prova, ou fortes indícios do contrário, o shopping foi tão-somente o cenário de uma tragédia, como poderia ter sido uma fábrica, um bar, um restaurante, uma escola…’

Continua Tardin: ‘As perguntas que o jornal deve se fazer, nesses casos, são: é, de fato, verdadeiramente relevante para o leitor saber o nome do estabelecimento onde ocorreu a tragédia? Em que essa informação vai contribuir para uma sociedade melhor, mais justa, menos violenta? Por mais que alguns leitores sintam curiosidade de saber o nome do shopping onde se deu o crime, a verdade é que essa informação não é, no entender da direção da Redação, mais importante do que proteger o nome de uma empresa inocente.’ O diretor de Redação ainda se propõe a fazer uma reavaliação do princípio ‘se ele vier a se mostrar equivocado’, mas, ‘até lá’ será mantida ‘a posição preservar o que não necessita ser exposto’.

A editora de Cotidiano do O POVO, Tânia Alves, complementa a resposta lembrando várias notícias recentes em que o mesmo procedimento foi adotado. Ela relaciona bares, restaurantes, um motel, empresas grandes e pequenas, em bairros centrais e da periferia. Cito três dos exemplos dados por Tânia, em que o nome do estabelecimento deixou de ser publicado: ‘Ladrões levam R$ 30 mil de construtora na Aldeota’ (29/6), ‘Quadrilha rouba motel na Barra do Ceará’ (28/6) e ‘Gangue atira em quatro pessoas por vingança’ (24/6) – as vítimas estavam dentro de uma churrascaria no bairro Quintino Cunha.

A editora geral de O Estado, Elizabeth Rebouças, e o secretário de Redação do Diário do Nordeste, Henrique Silvestre, não quiseram se manifestar sobre o assunto.

Quanto ao O POVO, tratar como um ‘princípio’, cabível a todas as contingências, a orientação para evitar expor pessoas, empresas ou instituições, é um erro, a meu ver, e, neste caso, não vejo nenhuma justificativa para fazê-lo. Mesmo porque revelar o local do crime não inculparia automaticamente o estabelecimento. Tratava-se de dar a informação correta ao leitor, a quem caberia avaliar, por si, se a notícia estaria contribuindo para ‘uma sociedade melhor, mais justa, menos violenta’, como argumenta o diretor de Redação.

Se a matéria explicasse corretamente o contexto do fato, qualquer leitor perceberia que o shopping Benfica não concorreu para o crime e também fora vítima, ainda que em menor grau, de uma violência indesculpável. É preciso cuidado para que uma orientação genérica não se transforme em biombo para explicar omissões injustificáveis. Há formas de dar a informação ao leitor minimizando-se o prejuízo de quem é apanhado por uma circunstância fortuita.

Sobre os demais jornais (e TVs), verificando-os, o leitor poderá perceber como é seletiva a política de preservar o nome de pessoas ou empresas em situação embaraçosa, dependendo do lugar que elas ocupam na escala social ou econômica.

ACUSAÇÃO

Infelizmente, um erro nunca vem só. O POVO divulgou grave acusação contra a mulher morta e contra uma pessoa que lhe era bem próxima. Segundo a notícia, o homicida disse na delegacia que o crime teria sido em ‘legítima defesa’, pois estaria sendo ‘perseguido pelo amante (da mulher), um médico (que) faz parte de um grande esquema de lavagem de dinheiro e tráfico de drogas’. É fato que a matéria não dá o nome do médico, mas ele será identificável pelos amigos ou colegas de trabalho e também por quem quiser pesquisar as indicações do jornal. Nenhuma pessoa foi ouvida para defendê-lo. Um irmão de Marilac deu declaração ao jornal, mas não deve ter sido questionado especificamente sobre a acusação à irmã, pois nada falou sobre o assunto.

Evitou-se expor o nome do shopping Benfica, mas deu-se publicidade à acusação (desprovida de qualquer evidência) do criminoso contra sua vítima, que não mais podia se defender; envolveu-se outra pessoa, que nada tem a ver com o crime, pelo menos ‘até prova ou fortes indícios do contrário’, para ficar nos mesmos termos usados por Marcos Tardin.

Feitas as observações, é preciso registrar como louvável o ânimo do diretor de Redação do O POVO em rediscutir o assunto.’