Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Revisão bem-vinda, mas insuficiente

A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) concluiu em agosto passado o processo de revisão do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Durante seu Congresso Nacional Extraordinário, realizado em Vitória (ES), delegados de 23 estados discutiram e formalizaram uma versão final do documento, que substitui um código de vinte e um anos.

A consulta à categoria, no entanto, começou em 2004, quando os sindicatos que compõem a Fenaj passaram a discutir emendas ao código de ética. Num segundo momento, uma comissão de especialistas sistematizou as sugestões encaminhadas e fez consulta pública no site da federação. Com as decisões do congresso nacional, os jornalistas chegaram a uma quarta versão de um código de ética de origem sindical. O primeiro surgiu em 1949, mas foi revisado em 1968. Em 1986, veio à tona o documento que serviu de base para a atuação dos jornalistas no período de redemocratização brasileira.

Como os avanços no jornalismo e na tecnologia foram muitos nessas últimas duas décadas, era mesmo necessário revisar o código, modernizando alguns trechos e incluindo cláusulas e cuidados sobressalentes. Neste sentido, a adoção de um novo código de ética para os jornalistas brasileiros é muito bem-vinda, mas não resolve toda a problemática da ética no país. Por duas razões fundamentais: a legislação profissional restringe as sanções que qualquer código deontológico possa prescrever, e um código – para mostrar eficácia – precisa contar com instrumentos de implementação efetiva.

O primeiro furo

Mesmo que bem intencionadas, as mudanças no Código de Ética dos jornalistas não puderam ir muito além no âmbito das sanções aos profissionais que incorrem em falha ética. Diferente de outras profissões, os jornalistas – mesmo que causem o pior dos prejuízos morais, por exemplo – não correm o risco de perder seus registros profissionais por agirem de forma antiética. As sanções chegam, no máximo, a uma advertência pública ao profissional faltoso. Se comparado a outros casos, como o dos médicos, engenheiros e advogados – que podem ser impedidos de atuarem profissionalmente –, o código dos jornalistas dispõe de poder limitado.

Para que isso se modificasse seria necessário alterar a legislação e passar do Ministério do Trabalho para a Fenaj a prerrogativa de conceder os registros profissionais dos jornalistas. Com isso, aí sim, a Fenaj poderia cassar os documentos de quem transgride o código de ética.

Como a reforma feita é um processo limitado, claro que essa fragilidade – sanções leves – não é exclusiva desta versão do código deontológico dos jornalistas. Mas esse detalhe reduz seu raio de alcance e sua eficácia punitiva.

Uma segunda preocupação

Deve-se elogiar a forma como a Fenaj conduziu o processo da revisão do código, pois os trâmites exaustivos de discussão apenas dão mais legitimidade e representatividade ao documento. Esses cuidados ampliam o trânsito do documento, mas não garantem o seu efetivo funcionamento.

O código deve ser bem elaborado, bem disseminado, aceito e assimilado pela categoria, mas é preciso ainda que haja formas de operacionalizá-lo. A mais importante é a comissão de ética. Tanto as dos sindicatos quanto a da Fenaj, de âmbito nacional. São essas comissões que acolhem as denúncias de procedimentos duvidosos, ouvem as partes, e definem sanções ou o arquivamento do processo. Por serem estratégicas, as comissões de ética precisam ser preservadas e fortalecidas, disporem de condições mínimas para funcionamento. Não só para trabalharem em possíveis processos abertos, mas também para atuarem como disseminadores de uma cultura jornalística responsável. As comissões, neste sentido, não precisam ocupar apenas a posição de órgãos repressores ou censores, mas também promotores de valores do jornalismo.

Por isso, não basta apenas a reforma do código. É preciso que as entidades classistas entendam que o fortalecimento das comissões é essencial para que o novo código se institucionalize junto aos profissionais. Sem esse cuidado, um código deontológico – por mais bem intencionado que seja – não passa de letra morta.

Mas o que muda?

À primeira vista, comparados o código atual e o de 1986, pode-se notar que a versão que saiu de Vitória é mais enxuta, já que o documento passou de 27 para 19 artigos. Vã ilusão. Na verdade, o novo código é mais amplo que seu antecessor e combina conteúdos já listados anteriormente, fundindo artigos, o que dá a impressão de uma peça mais sintética. O código aprovado em Vitória contempla as indicações históricas da deontologia jornalística no Brasil e adiciona ao menos duas importantes novidades: a cláusula de consciência e preocupações mais nítidas com métodos heterodoxos de obtenção da informação.

No artigo 13, por exemplo, o código de ética faculta ao jornalista ‘se recusar a executar quaisquer tarefas em desacordo com os princípios deste Código de Ética ou que agridam as suas convicções’. A seguir, indica que tal direito não pode ser usado como justificativa ‘para que o jornalista deixe de ouvir pessoas com opiniões divergentes das suas’. A chamada cláusula de consciência é o maior avanço do novo código, e ela permite que o jornalista não violente suas convicções em nome dos interesses da empresa para a qual trabalha.

Polêmica, a novidade já é um direito conquistado em países da Europa, por exemplo. No contexto nacional, a cláusula de consciência surge na evolução dos debates sobre o assédio moral no mundo do trabalho. Entre repórteres e editores, não é prática rara o hábito de pautar coberturas que não só contrariam as convicções individuais desses trabalhadores, mas também desviam-se das definições do bom jornalismo. Por isso, para combater os ‘jabás’ ou as ‘pautas 500’, a cláusula de consciência vem como fator positivo. Entretanto, sabe-se que o mercado e o empresariado do setor são bastante refratários a tais posicionamentos, condição que deve dificultar a implementação desse direito pra valer. É algo a se conferir nos próximos anos…

A segunda grande novidade no novo código de ética se ocupa dos avanços metodológicos e tecnológicos no jornalismo. No artigo 11, o jornalista é proibido de divulgar informações ‘obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração’. A proibição – no mesmo artigo – é flexibilizada na medida em que admite o uso daqueles meios quando impera o interesse público ou quando já se tentou de tudo. Ok, ok, mas é necessário criar regras mais específicas para essas situações? Quem deve arbitrar isso? As empresas, em normativas internas? As entidades de classe, como a Fenaj?

Questionamentos como esses devem se multiplicar nos próximos anos, com a vigência do novo código e com a sua assimilação pela categoria, a começar pelas gerações em formação e as que desembarcam diariamente no mercado de trabalho. Nada mal, já que o código de ética pode cumprir mais uma importante função profissional: motivar que os jornalistas reflitam e discutam seus limites de atuação e seu próprio campo de trabalho.

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Jornalista, professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univale) e coordenador do Monitor de Mídia, integrante da Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (Renoi)