Wednesday, 11 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1317

Senador quer que mídia promova negros

Na antevéspera do Dia da Consciência Negra, comemorado no domingo (20/11), a TV Globo apresentou um episódio da série Cidade dos Homens, ‘A Fila’, em que quase todos os personagens são negros, e quase todos são bandidos ou marginais, convivem com a criminalidade, sobrevivem na base do ‘jeitinho’.

Os autores dirão que é um retrato da realidade. Mas ao se fazer um retrato escolhe-se um ângulo. O ângulo melhorou em relação ao da matriz, o filme Cidade de Deus, mas isso não quer dizer que tenha se tornado muito melhor. Tornou-se menos ruim. Pouca coisa poderia simbolizar melhor do que esse programa de TV a situação ainda tão difícil do negro na sociedade brasileira. No sábado (19) os jornais divulgaram uma pesquisa do PNUD segundo a qual se os negros brasileiros formassem um país, ele estaria em 105° lugar no mundo, enquanto o Brasil ‘branco’ estaria em 44° lugar.

O senador Paulo Paim (PT-RS) é o autor do Estatuto da Igualdade Racial. Aprovada por unanimidade no Senado, a lei prevê cotas de no mínimo 20% para afro-brasileiros no serviço público, na mídia, na universidade e em todas as empresas com 20 ou mais empregados. Um dos artigos estabelece essa proporção mínima de afro-brasileiros em filmes e programas veiculados pelas emissoras de televisão. O episódio de sexta-feira (18) da série Cidade dos Homens ilustra uma das dificuldades que a nova legislação enfrentará: é possível que os papéis sejam ocupados por 99% de afro-descendentes, mas reforcem cem por cento a discriminação.

Na entrevista a seguir, dada na quinta-feira (17), Paulo Paim diz que essa questão será enfrentada dia a dia pela comunidade negra. Lamenta a escassa presença de negros no jornalismo, diz que é ainda é difícil encontrar sensibilidade e espaço para a questão racial no país e sonha em, daqui a dez anos, propor o fim da política de cotas, que se teriam tornado desnecessárias pela evolução socioeconômica e cultural.

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Que contribuição a mídia pode dar especificamente para que haja uma verdadeira alforria dos negros, como o senhor escreveu recentemente no Jornal do Brasil a propósito da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial?

Paulo Paim – A mídia, para mim, é fundamental. Tem um papel educativo, formador, é um instrumento vital na política de combate ao racismo e ao preconceito. Quando criança, eu procurava referências negras na mídia, e não encontrava, porque não tinha, há quarenta anos atrás, quando eu estava com 15 anos de idade. E a situação dos jovens de hoje não é diferente. Referência, queiramos ou não, são aqueles que têm visibilidade. Eu nunca imaginei, por exemplo, que os irmãos Rebouças eram negros. E calcule a força que tem, não vou falar nem de cinema, rádio, jornal, teatro, mais a televisão. Porque a televisão, queiramos ou não, entra em todos os lares. É preciso que veículos tão importantes como esses possam apresentar figuras negras, atrizes, atores, como referência de famílias bem-sucedidas, mostrando que dá para chegar lá.

Ao longo da minha vida nunca vi negros bem-sucedidos, a não ser a figura simbólica e emblemática do Pelé, mas pela via do futebol. É claro que o futebol é importante, o samba é importante, mas eu quero ver também o intelectual negro, o economista, o médico, o advogado, o executivo, o empresário, o fazendeiro – que não tem neste país até hoje. Você consegue se lembrar de um fazendeiro negro? Eu não consegui achar nenhum. E mesmo a relação de um negro ou de uma negra com uma mulher branca ou com um homem branco. Mas uma relação que mostre efetivamente a nossa chamada miscigenação, nosso encontro de raças, que é tão bonito. O mesmo para a propaganda. Na mídia, haver também alguns âncoras, que quase não há, é muito difícil.

No livro Cumplicidade, escrevi um poema em que digo: ‘Senhor meu Deus, perdoai os imbecis e os ignorantes, porque somente esses conseguem ser racistas’. Pode ser forte, mas dá impacto. Eu não estou propondo que a mídia tenha que dizer isso, estou propondo que a mídia mostre os homens de bem, quem tem compromisso com a Humanidade, uma geração toda tem que ser solidária e companheira e não permitir que a cor qualifique ou desqualifique alguém. A mídia, nesse aspecto amplo, é o carro-chefe do combate ao preconceito e ao racismo.

Convém fazer uma distinção entre mídia de entretenimento e mídia jornalística. A cobertura jornalística do problema é deficiente. A consciência da existência do problema, da lentidão dessa evolução, ainda não é colocada corretamente.

P.P. – Claro que não. Por exemplo, eu falava do Estatuto na Rádio Bandeirante de Porto Alegre e uma senhora ligou para lá e contou a seguinte história. ‘Eu, quando jovem, namorei um homem negro. Fiquei grávida dele’. Ela contou no ar, isso. ‘Fiquei grávida dele e meus pais, meu pai e minha mãe, moro no Passo da Areia’, deu o nome completo dela, ‘meu pai e minha mãe me espancaram, me espancaram até ter segurança de que eu tinha abortado a criança, e de fato abortei. Hoje meu filho teria 30 anos’. Quer dizer, um fato como esse, era de ter uma repercussão até internacional, mas acaba não sendo dada a devida divulgação. O que eu recebo de denúncia, aqui no gabinete, mas não tem espaço para debater isso. Não tem espaço para uma cobertura que mostre que é um problema, existe, não tem como nós fazermos de conta que não existe. E temos que enfrentá-lo de uma maneira propositiva, afirmativa, para alterar o quadro.

Eu estou aqui como senador da República, fui durante dois anos vice-presidente do Senado, mais eu sei que lá na rua continua acontecendo como aconteceu comigo quando eu era jovem. Não mudou nada, nesse aspecto.

Se houvesse mais jornalistas negros destacados… A sensibilidade de um redator-chefe negro para esse tipo de problema seria quase que obrigatoriamente maior do que a sensibilidade…

P.P. – … de quem nunca sentiu o problema…

… de quase cem por cento dos redatores chefes brasileiros, que não são negros, nunca foram.

P.P. – É um problema que, queiramos ou não, eles desconhecem, porque o subconsciente deles nunca viveu isso.

Voltando a um ponto que o senhor mencionou, o Estatuto estabelece cotas. Reza assim: ‘Os filmes e programas veiculados por emissoras de televisão deverão apresentar imagens de pessoas afro-brasileiras em proporção não inferior a vinte por cento do total de atores e figurantes’. Mas essa imagem pode ser negativa. Podem colocar 25% de atores negros, no caso de uma novela, digamos, e, desses 25%, 90% serem personagens que perpetuam a imagem discriminada. A forma da lei pode mexer nisso?

P.P. – Não existe lei perfeita. A lei não pode detalhar os fatos. Mediante o que diz a lei, que garante que 20%, no mínimo, têm que ser atores e figurantes negros, compete naturalmente à comunidade negra fazer com que não haja a discriminação no roteiro. A comunidade negra tem que entender que a lei veio para abrir espaço. O resto ela tem que conquistar. Se não, fica até muito paternalista. Não se pode chegar ao ponto de dizer: têm que ser no mínimo 20% negros, mas no mínimo 10% têm que ser os principais. Aí, sim, iria surgir aquela argumentação do outro lado: você não está permitindo que eu exerça minha criatividade. Quando a lei estabelece isso como forma de combater o preconceito, está induzindo a no mínimo haver uma postura equilibrada na hora de fazer a montagem, não botar os negros só na senzala, só para dar o exemplo, mas botar o negro também como um fazendeiro que deu certo lá na produção de café ou de soja. É como as cotas na universidade. Podemos dar as cotas, mas a comunidade negra vai ter que saber que lá dentro, na universidade, se eles não forem os melhores, vão para a rua, porque não vão passar, no final. Calcule um exame da OAB…

Uma lei como essa, tão ampla, com 86 artigos, só dá certo se a sociedade incorporar o espírito da lei. É como no caso dos governos. Não adianta criar um fundo autorizativo se o governo não age. Tem que haver um mínimo de vontade da sociedade para não permitir que aconteça no Brasil o que está acontecendo na França. Eu não quero isso para o Brasil, como também não quero para a França.

Existe um relato interessante sobre uma universidade na Bahia. Havia 30 vagas – o número é apenas indicativo – num curso muito procurado. Foram tiradas dez vagas para as cotas. Ficaram 20 vagas, que foram disputadas ferozmente pelos melhores entre os melhores. O resultado é que de um lado, na sala de aula, ficaram esses 20 alunos fortíssimos, e do outro lado ficaram os dez das cotas, muito fracos. E eles não se misturam dentro da sala. Para que as cotas funcionem melhor, o país não deveria aumentar o número de vagas? Para se enfrentar a questão do negro na sociedade brasileira é preciso enfrentar todas as carências, porque ela não está montada para absorver essa população.

P.P. – Temos que buscar o ideal. A universidade livre, pública e gratuita para todos. Mas enquanto não chegamos lá, temos que ir abrindo portas. Vamos ter problemas? Vamos? Vamos ter alguns embates. Mas nós vamos ter que ir conquistando os espaços. Eu não me considero nenhuma sumidade, nenhum gênio,mas quando percebi que havia espaços fui peleando e buscando, para chegar à Câmara dos Deputados, à Constituinte, ao Senado, ter a ousadia de chegar a vice-presidente do Senado, porque a vaga era do partido e eu tinha o direito de disputá-la. O que não pode é os negros continuarem marginalizados. O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravatura. Se para nós era proibido estudar, comprar terra, ter um trabalho regular – porque a Lei Áurea diz ‘os negros estão libertos’, mas direitos civis para eles, nenhum –, nós estamos recuperando aquilo que nos foi negado ao longo da nossa História. Pode ser que esse enfrentamento que esses dez estão fazendo lá, de forma positiva, até passando por alguns constrangimentos, venha a ser um espaço assegurando para a geração futura. Nós seríamos os pioneiros.

Há um artigo no Estatuto que prevê um mínimo de 20% de afro-descendentes em toda e qualquer empresa com 20 ou mais empregados. Isso se refere, portanto, também a empresas de mídia. Elas estão completamente distantes disso.

P.P. – Estão completamente distantes.

Existe algum levantamento sobre esse quadro?

P.P. – Se não me engano, a [atriz e militante negra] Zezé Mota tem um trabalho nessa área. Porque não chega a 10%, hoje, o número de negros no Parlamento, nos partidos políticos, na mídia. Na Educação parece que não chega a 5%. Por que no mínimo 20%? Porque nós estaríamos dando um crescimento de 100% de espaço para os negros. Claro que em estados como a Bahia 20% não é nada, tendo em vista a proporção de negros lá. Mas é no mínimo 20%. Na Bahia você vai ver que em postos estratégicos não se tem sequer 20%.

Imaginando um caso inverso ao da Bahia, um município qualquer de um estado brasileiro, não precisa ser Santa Catarina, no Espírito Santo, por exemplo, há casos assim, um município que não tenha comunidade negra, só filhos de imigrantes alemães, poloneses, digamos [no documentário O Fim e o Princípio, de Eduardo Coutinho, filmado no povoado de Araçás, município de São João do Rio do Peixe, Paraíba, nenhum personagem, com uma ou duas exceções, parece ser afro-descendente]. Como se fará?

P.P. – Aí prevalece o bom senso. Se efetivamente há um estado, vamos exagerar, onde 99% das pessoas são brancas, tem que prevalecer o bom senso. Os espaços são conquistados e a lei vai ter que se adaptar à realidade brasileira, dando um passo à frente. Nós temos que ir avançando dentro de um quadro real. Não podemos achar que agora vamos buscar negros de um estado para o outro porque lá não tem. Bem, se o negro resolver migrar para lá e ocupar seu espaço, é legítimo e de direito.

Cotas, para mim, é uma política transitória. Eu vou ser a pessoa mais feliz do mundo se daqui a dez anos eu entrar com um projeto para revogar a política de cotas. É o caso dos Estados Unidos. Eles batalharam pelas cotas lá atrás. Hoje estão revogando a política de cotas, nos estados em que ainda tem, porque a população lá é 11% e temos mais do que isso de negros ocupando espaços relevantes naquela sociedade, pelas informações que recebi de alguns autores famosos de lá.

E como continuam a lutar, já que os problemas dos negros estão longe de ter sido resolvidos nos Estados Unidos?

P.P. – Eles me disseram que hoje estão na política do boicote. Se uma Coca-Cola não emprega negros, a orientação é não comprar Coca-Cola. Se tal filme, onde poderia e deveria haver negros, por toda a lógica dos fatos, não tem negros, a orientação é boicotar o filme. Nós não chegamos ainda nesse estágio. Nossa política ainda é, para muitos, chocante. Eles chamam de discriminação ao contrário. A cota será para os não-negros… de 80%. E para os negros vamos dar só 20%… Está bom, assim? Quem sabe o Estatuto, sendo aplicado no Brasil, não venha a ser um exemplo para a França no futuro? [Postado em 19/11/2005 às 21h11]