Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Todo cuidado é pouco

O corpo de um menino foi encontrado no dia 14 de abril deste ano em uma cova no interior do Rio Grande do Sul, na área de mata da cidade de Frederico Westphalen, a cerca de 80 km de Três Passos. Segundo o Ministério Público, o crime foi orquestrado pela madrasta da criança e com o consentimento do pai. O que teria levado o garoto à morte seria o excesso do medicamento Midazolam. O remédio lhe foi aplicado em quantidade suficiente para causar a morte, conforme o laudo da perícia, que encontrou o medicamento no estômago, rins e fígado da vítima.

A criança, de nome Bernardo Boldrini e com 11 anos, além de ser vítima de seus assassinos, também foi da imprensa. A mídia realizou um enorme circo em volta do caso e determinou o fim da intimidade do garoto e de sua família. Inúmeras notícias nos diversos jornais do país detalhavam o caso e prontamente condenavam a madrasta, Graciele Ugulini, e o pai, Leandro Boldrini.

A presença de um número incontável de relatos era esperado, mas o que realmente deu o “ponto final” na ética foi a reportagem do Fantástico exibida em 31 de agosto (ver aqui). Quatro meses após o ocorrido, vídeos da vida pessoal da família foram revelados, aonde era colocado em contraste o casal feliz e a família perplexa e cheia de problemas com a presença do menino. Essa atitude de retaliação à intimidade da família se disseminou por outros veículos, como o jornal O Dia, a GloboNews e o jornal O Globo, entre outros.

Caso em detalhes

De acordo com as investigações, Graciele levou o enteado de Três Passos até Frederico Westphalen. Antes de viajar, a madrasta deu ao garoto a substância Midazolam por via oral, para que ele “não ficasse enjoado”. Posteriormente, eles se encontraram com Edelvania Wirganovicz, amiga de Graciele, e foram para um local na Linha São Francisco, Distrito de Castelinho, onde já havia uma cova aberta verticalmente.

Após isso, a madrasta e Edelvania deram novamente ao menino a substância Midazolam, mas desta vez por uma injeção. A quantidade era o suficiente para causar a morte de Bernardo, segundo laudo pericial. A substância é semelhante ao Diazepan e seus principais efeitos são ansiedade, ânsia ou nervosismo; relaxamento muscular; amnésia e, em altas doses, pode causar hipnose. Ele é muito utilizado como pré-anestésico, sendo também muito utilizado como sedativo em cirurgias extensivas.

O corpo do garoto foi encontrado na cidade de Frederico Westphalen, na área da mata. Ainda segundo as investigações, Graciele recebeu uma multa por excesso de velocidade, no dia do assassinato, em uma rodovia em direção a Frederico Westphalen.

Casos como o de Bernardo provocam na sociedade certa comoção, promovida muitas vezes pela própria imprensa. A feira formada no caso contribui para a excessiva exploração da imagem do menino e de sua morte. Momentos particulares da família foram divulgados sem o menor pudor. Nesse caso, os familiares do menino, ainda enlutados pela morte de um ente e pela forma traumática como as coisas foram acontecendo, se tornaram vítimas, desta vez da imprensa.

As imagens gravadas pelo próprio pai e capturadas pela polícia, durante a investigação foram distribuídas à imprensa e esta prontamente as divulgou. No caso da reportagem do Fantástico citada acima, havia cenas de um casal aparentemente “apaixonado”. Elas eram intercaladas, como forma de contraste, com outros vídeos do pai provocando Bernardo enquanto este o ameaçava com um facão e outras situações de discussão entre o menino e a madrasta. Neste caso, a ética foi enterrada.

Julgamento prévio

A questão ética aqui vai além da já citada invasão da privacidade da família. Também devemos levar em conta o fato de os dois acusados, no caso o pai e a madrasta, terem sido prontamente apontados como culpados pela imprensa e pela sociedade.

Nem bem as investigações se iniciaram e o já conhecido ritual de apontar culpados começou. Assim que a polícia anunciou Leandro e Graciele como principais suspeitos do crime, a mídia bateu o martelo: eles eram culpados. Essa determinação em apontar os criminosos não se dá muitas das vezes de forma ostensiva, mas, como foi nessa ocasião, de uma maneira sutil e cuidadosa.

Um dos exemplos dessa acusação amena é a reportagem do jornal O Dia (ver aqui) que trata uma discussão, algo que ocorre nas “melhores famílias”, como uma sentença de morte. A manchete diz: “Em novo áudio madrasta ameaça Bernardo Boldrini” e no meio da matéria há trechos da conversa entre os dois intercalados com afirmações do jornal. “…Vocês me agrediram, tu (Graciele) me agrediu.” A madrasta responde e ameaça o garoto: “Eu vou agredir mais, eu não fiz nada em ti… Tu não sabe do que eu sou capaz.” A matéria segue até a inclusão de outro trecho da discussão: “…Eu não tenho nada a perder. Tu não sabe do que eu sou capaz. Eu prefiro apodrecer na cadeia a viver nesta casa contigo incomodando.” Graciele ainda finaliza: “É, vamos ver quem vai para baixo da terra primeiro…”

A inclusão da conversa no meio da reportagem aparece como uma prova apresentada pelo jornal de que a madrasta é a culpada. Esse mesmo áudio é citado em uma matéria do jornal O Globo (ver aqui), mas dessa vez a acusação é feita de forma clara. Citando apenas o título da notícia, “Gravação mostra ameaça de morte e Bernardo pedindo socorro”, observamos essa atitude de sentenciar.

Essas atitudes tomadas pelos meios de comunicação são perigosas, pois a sociedade as acaba tomando como a verdade sobre o caso. Falar que alguém é culpado ou simplesmente tratá-lo dessa maneira expõe a pessoa e pode até colocá-la em perigo. Não afirmo que Graciele era inocente, culpada ou qualquer outra coisa. Apenas que a imprensa tem muitos papéis, mas nenhum deles é o de juiz. Em nosso país parece que há uma cultura nas redações de ver quem desvenda o caso primeiro. Qual meio irá apresentar a prova mais contundente. Os inúmeros chutes, a presença constante e cansativa dos “especialistas”, verdadeiros “arrozes de tragédia”. No final das contas, todos querem brincar de CSI.

Dois pesos duas medidas

Também se deve destacar o fato de que esse destaque dado a determinados casos como o do Bernardo Boldrini, ou alguns mais antigos, como o de Isabella Nardoni, não é por acaso. Quando se passa algo parecido com o que houve com Bernardo e Isabella com uma criança da favela, é certo que não terá uma cobertura midiática tão marcante e um forte apelo popular como foi na ocasião com essas duas crianças.

A opção de dar prioridade aos “filhos” de classe média, brancos e de família bem sucedida é proposital. Talvez pelo fato de para a grande mídia os que são pobres, negros e “favelados” não serem importantes, ou por a morte de uma pessoa nessas condições, e aí julgo ser algo ainda mais grave, não ser tão chocante para a sociedade quanto a de uma criança mais abastada.

Quando Isabella foi assassinada, em março de 2008, o caso foi tema de discussão nacional. Notícias saíram em todos os jornais, todos comentavam sobre o assunto e ninguém tinha dúvidas, os pais eram os assassinos. Em junho daquele ano, Pedro Henrique Marques Rodrigues foi morto aos cinco anos de idade em Ribeirão Preto. Em seu atestado de óbito consta que ele faleceu de insuficiência respiratória e tinha marcas de que sofria violência em seu corpo. Os pais do menino, Juliano Aparecido Gunello e Kátia Marques, foram condenados pelo crime de tortura. Mas, esse fato não foi divulgado com a mesma intensidade com a qual o caso de Isabella foi.

Outro assassinato também ocorreu em moldes parecidos com estes naquela época. No mês de setembro de 2008 os irmãos João Vitor dos Santos Rodrigues e Igor Giovani dos Santos Rodrigues, com 13 e 12 anos respectivamente, foram assassinados pelo pai e pela madrasta. João Alexandre Rodrigues e Eliane Aparecida Antunes esquartejaram e jogaram no lixo as duas crianças. A tragédia aconteceu em Ribeirão Pires e também não recebeu um tratamento adequado da imprensa. Mais tarde o pai foi condenado a 67 anos de prisão e a madrasta a 59 anos, seis meses e 20 dias.

Uma velha história

Casos como o do menino Bernardo não são novidade no Brasil e isto deve ser visto com muita preocupação. Em outras ocasiões vimos a mesma maneira de agir por parte da imprensa. Tomemos como exemplo, além do caso Nardoni, o caso Escola Base (entenda o caso), entre outros.

Tornar o casal Nardoni “o inimigo número um do Brasil”, como disse Valmir Salaro (ver aqui), é algo delicado. As pessoas acabam não conseguindo enxergar mais a possibilidade dessas pessoas serem inocentes. Alguns chegam ao ápice de defender a execução dos réus. Todo cuidado é pouco na hora de anunciar e tratar de casos como esses. A imprensa e os jornalistas tem o poder de influenciar a opinião pública de tal forma que a vida dessas pessoas pode “acabar”.

A Escola Base era uma escola particular de São Paulo que foi fechada em 1994. O casal de proprietários, Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, juntamente com a professora Paula Milhim Alvarenga e o motorista Maurício Monteiro de Alvarenga, foram acusados pela imprensa de abuso sexual contra alguns alunos. Posteriormente descobriu-se que tudo não passava de um engano, mas não havia como voltar no tempo, o erro já tinha sido cometido. A vida daquelas pessoas simplesmente acabou.

Até hoje o episódio é lembrado como um mau exemplo de cobertura jornalística e alguns defendem que a imprensa brasileira melhorou após o ocorrido. Mas, ao que vemos, alguns cuidados que deveriam ser tomados, ainda não acontecem.

Bibliografia

DALMONTE, Edson Fernando; Teoria e Prática da Crítica Midiática; 2013.

BARATTA, Alessandro; Ética e Pós-Modernidade.

>> http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_intimidade_devassada

>> http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/08/gravacoes-mostram-como-era-relacao-entre-pai-e-madrasta-de-bernardo.html

>> http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2014-08-26/video-revela-agressoes-e-ameacas-a-bernardo-boldrini-dentro-de-casa.html

>> http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2014-08-27/em-novo-audio-madrasta-ameaca-bernardo-boldrini.html

>> http://oglobo.globo.com/brasil/gravacao-mostra-ameaca-de-morte-bernardo-pedindo-socorro-13745005

>> http://globotv.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/v/divulgado-audio-em-que-bernardo-boldrini-pede-socorro-e-e-ameacado-por-uma-mulher/3590322/

>> https://www.youtube.com/watch?v=m0AkUtjXXIA

>> http://noblat.oglobo.globo.com/documentos/noticia/2008/04/cautela-na-pauta-do-reporter-98626.html

>> http://nota-dez.jusbrasil.com.br/noticias/100237761/tjsp-tj-condena-por-tortura-pais-de-crianca-morta-em-ribeirao-preto?ref=home

>> http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/o-pais-quer-saber/o-caso-dos-meninos-assassinados-pelo-pai-e-pela-madrasta-2/

>> https://www.youtube.com/watch?v=vGRIuXESqco

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Thiago Vaz é estudante de Jornalismo