Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Um bebê na lagoa e uma onda de violência

Percorreram mundo as imagens de um bebê de 2 meses de idade sendo salvo enquanto boiava dentro de um saco de lixo na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte. Foram registradas por um cinegrafista amador que passava no local no exato momento em que dois homens, após ouvir o choro vindo das águas, iniciaram o resgate com a ajuda de um pedaço de pau. Era um sábado (28/1/2006), dia propício para uma matéria especial no Jornal Nacional. A Globo Minas foi a emissora que comprou as cenas.

No domingo, dia de maior tiragem dos jornais, a imprensa estampava a foto da menina, sã e salva, nos braços de uma médica, já num hospital. Ainda na manhã dominical, a Polícia Civil de Minas prendeu a mãe da criança, Simone Cassiano. ‘Vocês ainda vão ver quem jogou a droga dessa criança na lagoa’, disse a mulher, diante das câmeras, na porta da delegacia.

À noite, a Globo nem rodou a vinheta de abertura do Fantástico. Terminado o Domingão do Faustão, entrou no ar detalhada reportagem sobre o caso, sem cortes nas imagens do cinegrafista amador e com destaque para a declaração chocante de Simone Cassiano. Ao fim da reportagem, cobrindo cenas da garota durante o resgate e nos braços da médica, a voz grave de Cid Moreira anunciou: ‘No ar, o show da vida’. Um espetáculo que nos dias seguintes continuou como destaque em todos os veículos de comunicação do planeta.

Coincidência ou não, mais do que emocionar o mundo e servir como exemplo daquilo que não deve ser feito, o caso da garotinha ‘batizada’ com o nome de Iara desencadeou uma série de maus-tratos contra crianças, em Minas Gerais e em outros cinco estados brasileiros. Isso para ficar somente nos fatos registrados pela polícia e noticiados pela imprensa. Até o dia 16 de fevereiro, portanto num período inferior a 20 dias, foram 10 casos em Minas Gerais, dois em São Paulo e um no Rio Grande do Sul, no Distrito Federal, no Paraná e em Santa Catarina.

Pacto sobre suicídio

É o caso então de ser discutida a reação da sociedade diante da cobertura que a imprensa dá a determinados fatos ditos ‘policiais’. Não só no caso de Simone Cassiano e a garota Iara, mas em todos os outros ocorridos em Minas, o movimento na assessoria de comunicação da Polícia Civil foi um reflexo fiel da ânsia pelo furo que move a todos nós, jornalistas. Cada um querendo um detalhe a mais, de imediato, não importando se a informação solicitada poderia ou não atrapalhar essa ou aquela investigação policial.

Não se trata aqui de colocar qualquer dúvida sobre a cobertura dos fatos policiais pela imprensa. Noticiar a realidade, por mais perversa que ela seja, é um papel que nós, jornalistas, devemos cumprir diariamente para ajudar a sociedade a compreender e a combater suas próprias mazelas. Nesse particular, a determinação que seguimos no dia-a-dia da Assessoria de Comunicação Social da Polícia Civil é garantir a transparência das ações policiais. Tarefa que tem na imprensa mineira, em particular, a principal aliada. Mas o que se propõe é discutir até que ponto o estilo de certos noticiários motiva o comportamento do cidadão comum.

Desde que a imprensa internacional estabeleceu uma espécie de pacto para a não-divulgação de suicídios, os registros desse tipo de violência caíram de forma considerável. Seria o momento, então, de abrir um debate amplo, com todos os setores da sociedade, sobre a forma que a divulgação de um fato deve ter para que a notícia cumpra efetivamente sua função social de defesa do ser humano.

Um novo pacto?

Entre os dias 28 de janeiro e 16 de fevereiro, além do bebê jogado na Pampulha, uma outra criança foi encontrada, desta vez morta, no Córrego das Canoas, em Porto Alegre. Outra, de 3 anos, morreu vítima de agressão, em Joinville (SC). Um pai degolou a filha em Ouro Preto (MG) e até uma mulher, na condição de avó, procurou a polícia para proteger a neta, denunciando a própria filha. Sem contar o caso do pai que teria estuprado a filha de 2 meses. Houve também abandono, chutes e outras agressões. Uma avalanche de casos incríveis que a imprensa cuidou de trazer para bem perto de nossos olhos e ouvidos.

Cabe, então, perguntar: esse tipo de noticiário, da forma como é produzido e veiculado, pode incitar novas ocorrências? Seria o momento de se estabelecer um novo pacto? Como nós, jornalistas, podemos nos impor limites se há uma correria desenfreada para noticiar no dia seguinte algo a mais que o colega de profissão, mesmo quando tratamos da vida (ou morte) de alguém? Está proposto o debate, não só para a imprensa, mas para toda a sociedade. Mesmo que o resultado disso não devolva a vida às sete crianças mortas no Brasil nos últimos dias pelos próprios pais.

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Jornalista, professor universitário, assessor de Comunicação Social da Polícia Civil de Minas Gerais