Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma voz sem coral

A grita de boa parte dos mais vistosos veículos de comunicação contra o Programa Nacional de Direitos Humanos em sua terceira roupagem não se justifica em absoluto seja por qual aspecto seja objeto de análise, reflexão, mensuração. Lutar para garantir o direito à comunicação democrática e também ao acesso à informação como meio de consolidação de uma cultura em Direitos Humanos é algo que remonta à própria noção de liberdade de imprensa. Aceitamos estes conceitos. E ficamos por aqui desde que continuem sendo apenas um amontoado de boas intenções?


Para que essas palavras, tão grávidas de boas intenções dêem à luz uma nova realidade partindo do papel dos veículos de comunicação torna-se inescapável perceber que deve ser missão dos veículos promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e o cumprimento de seu papel na promoção da cultura em Direitos Humanos. E para isto nada como ter um exemplar da Constituição Federal à mão e, folheando, pararmos no disposto no artigo 221.


O texto reclama – desde seu nascimento, em 1988 – a criação de marco legal regulamentando este artigo, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados, como condição para sua outorga e renovação, prevendo penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação, de acordo com a gravidade das violações praticadas.


Do contrário teremos apenas letra morta.


Observatórios sociais


Não será chegado o momento para se promover o diálogo com o Ministério Público com o intuito de propor ações objetivando a suspensão de programação e publicidade atentatórias aos Direitos Humanos? Ou continuaremos sendo bombardeados com programas na tevê e de rádio, reforçando estereótipos que diminuem a dignidade humana de negros, homossexuais, meninos de rua, ciganos, portadores de deficiência física e mental? E contra judeus, muçulmanos, praticantes do candomblé ou de igrejas evangélicas?


Todos sabemos que parte substancial do dinheiro que faz rodar o planeta da publicidade e do marketing são originários do Poder Público (federal, estadual, municipal), portanto, sendo mais claro, é o dinheiro – que chega aos governos a título de impostos, taxas e emolumentos – que joga água continuamente no moinho do agitado mercado publicitário.


Não seria chegado o momento de autorizarmos de forma clara e textual aos governos que suspendam o patrocínio e publicidade oficial em meios que veiculam programações atentatórias aos Direitos Humanos? Mexendo no bolso mexe-se na consciência dos que decidem as grades de programações. Mas como fazer isso? Ora, simples, muito simples. Basta que se desloque 250 funcionários dos 542.843 servidores públicos federais existentes no Brasil (dados de 6/10/2009) para lerem jornais e assistirem programas de rádio e de televisão 24 horas por dia, com planilhas bem desenhadas, preenchendo questões como ‘personagem utiliza termo chulo contra negro, homossexual, cigano, mulher etc?’, ‘locutor destrata seguidores dos cultos afros, desqualifica pessoa por ser de origem judaica, incentiva a destruição de símbolos religiosos?’, ‘comentarista lança impropérios, agride verbalmente índios, chama-os de preguiçosos, vagabundos, sujos etc?’, ‘âncora diz com áudio aberto, do alto de sua bancada de tevê que os garis são uns m… e que estão na escala mais baixa do mercado de trabalho já que desejam boas festas do alto de suas vassouras?’


E por aí vai.


Não teríamos capacidade (e bom senso) para tratar a promoção dos direitos humanos algo mais abrangente que o proposto em minuciosos textos preparados por instâncias ministeriais do governo federal, algo que vá mais além que os poderes do Estado, que permeiem as diversas instâncias da vida em sociedade? Então, por que não elaborarmos critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações?


Ante tarefa dessa magnitude, por que não recomendar aos estados, Distrito Federal e municípios que tragam à existência e tornem-nos acessíveis Observatórios Sociais destinados a acompanhar a cobertura da mídia em Direitos Humanos? Apenas isto e já teríamos uma revolução no emergir de uma consciência nacional para os direitos humanos.


História recente


É corrente o dito popular dando conta que a imprensa é pior que a língua da vizinha. Em miúdos, isso quer dizer que ninguém de bom senso se atreve a contrariar a imprensa, ninguém que seja sensato ou bata bem da cabeça quer ter a imprensa como sua inimiga. É que o embate é extremamente desigual, os meios se assemelham a estilingue de madeira, borrachas e couro em contraposição aos franceses Raffale, muito superiores aos suecos Grippen. Não seria o caso de se desenvolver programas de formação nos meios de comunicação públicos como instrumento de informação e transparência das políticas públicas, de inclusão digital e de acessibilidade?


Nos anos 1970, cansei de engrossar passeatas no Rio de Janeiro empunhando dizeres a favor do desarmamento nuclear. Era o auge da guerra fria, era o medo de um horror nuclear e apenas duas nações diziam ter meios de apertar o botão vermelho. Naqueles anos circulava facilmente a frase que se encontra no âmago da constituição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), de 16 de novembro de 1945: ‘Se a guerra nasce na mente dos homens, é na mente dos homens que devem ser construídas as defesas da paz’. Tomando esta imagem de empréstimo, não seria o caso de os estados, Distrito Federal e municípios incentivarem aos órgãos da mídia para que incluam os princípios fundamentais de Direitos Humanos em seus materiais de redação e orientações editoriais?


Brasileiro tem memória curta. Cansei de ouvir essa frase, esse bordão, este pseudoprovérbio. Ele é ouvido sempre que surge um político enlameadíssimo em escabroso episódio de corrupção, de roubo de estratosférica quantidade de dinheiro público ser eleito pelo voto popular para governar um estado ou o Distrito Federal, ou ser diplomado deputado federal ou senador da República. E quanto aos anos de enxofre (cansei do batido anos de chumbo), que memória nosso povo ainda tem deles?


Milhares de vítimas entre desaparecidos, esquartejados, estrangulados, asfixiados, seviciados, eletrocutados, torturados e por fim jogados na Baía da Guanabara ou enterrados nas matas do Araguaia… que memória temos deles? Salvo os que foram trocados por embaixadores estrangeiros e que voltaram à militância política como ministro de Estado ou parlamentar, que memória temos desses que tombaram Deus sabe onde e a quem nenhum mãe, pai, irmãos ou filhos sabe onde depositar suas merecidas e sofridas flores com 25, 30, 40 anos de atraso?


É brasileiro que tem memória curta ou a memória curta é fruto do descaso de nossa sociedade, de nossos meios de comunicação que chegam mesmo a tratar desse anos de enxofre como se brandos houvessem sidos? Não seria mais que chegado o momento de incentivarmos a produção de filmes, vídeos, áudios e similares, voltada para a educação em Direitos Humanos e que reconstrua a história recente do autoritarismo no Brasil, bem como as iniciativas populares de organização e de resistência?


Muitas vozes


Se você conseguiu ler e até aqui, a bem da verdade, quero que você leitor(a) saiba que as sugestões em forma de interrogação foram retiradas do Decreto número 7.037 assinado em 21 de dezembro de 2009 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Este documento atende também pelo nome de Programa Nacional de Direitos Humanos 3. Se eu fosse você, leitor(a), ficaria ensimesmado tendo descobrir por que nada disso aqui escrito foi veiculado na cobertura – quase uma operação de guerra – montada pelos veículos de comunicação nas primeiras duas semanas deste 2010.


É que, embora proclamem aos quatro ventos que a missão da imprensa é informar, é trazer conhecimentos, é facilitar o acesso ao que acontece aqui e no mundo como um todo, sempre buscando a verdade dos fatos, ouvindo o contraditório, atuando de forma ética e transparente… no fundo, a imprensa só quer mesmo é vocalizar seu desagrado contra qualquer vírgula governamental que possa, de forma amplificada pela mesma imprensa, diminuir o alcance de seu poder e salvaguardar suas conquistas, muitas delas amealhadas sabe Deus lá como.


E sem falar que o PNDH-3 é o que há de mais avançado e moderno no mundo na temática dos direitos humanos e sob a égide de um governo nacional. Se em 2016 o Brasil poderá ser festejado como quinta potência mundial ao menos no aspecto financeiro (PIB, Índice Gini, IDH etc.), mais digno ainda de louvor será se, colocado em movimento do PNDH-3, pudermos avançar para um dos três primeiros lugares que mais consideram os direitos humanos como política pública perene, transversal, inclusiva. Seus seis eixos temáticos entesouram os melhores sonhos e aspirações de gerações de brasileiros. É quando o Brasil poderia dizer ao mundo que Direitos Humanos é o novo nome do Desenvolvimento e da Paz.


Lamentavelmente vemos a quase totalidade dos tais ‘meios midiáticos’ unidos como muitas vozes em uma só voz. São as vozes dos seus donos juntas, emitindo a mesma nota incidente de que assim consegue tão somente ser uma voz, sem coral. Porque o coral é formado pelos 193.000.000 de brasileiros que anseiam por um Brasil onde os direitos humanos sejam tão acessíveis quanto o próprio ar que se respira.

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Jornalista e escritor, mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter