Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A quem interessa o Novo Ensino Médio?

(Foto: WOKANDAPIX / Pixabay)

No dia 05 de abril o governo federal publicou uma portaria suspendendo a implementação do Novo Ensino Médio, por 60 dias. A portaria que publicou a decisão determinou que o tempo de suspensão deverá ser utilizado para avaliação e reestruturação da política voltada para o Ensino Médio.  Desde então, o tema ganhou repercussão na mídia e despertou a crítica de personalidades políticas e artísticas, como Michel Temer, que afirmou que a suspensão é um “equívoco”. Já o apresentador de TV, Luciano Huck, declarou que a implementação do Novo Ensino Médio “deveria estar acima de diferenças ideológicas”, criticando a portaria do governo federal. Diante de posicionamentos como os citados acima, convém perguntarmos: para quem o Novo Ensino Médio interessa?

Certamente, para os estudantes da rede pública de ensino, o modelo não interessa. Ao contrário, representa uma grave ameaça para a formação destes jovens, colocando-os em uma situação de desigualdade em relação aos estudantes da rede privada. Para entendermos o motivo da afirmação feita acima, refletiremos sobre alguns aspectos do Novo Ensino Médio. A lei 13.415, de 2017, que instituiu o Novo Ensino Médio, estabelece que o currículo do Ensino Médio será composto pela Base Comum Curricular (BNCC) e por itinerários formativos (aprofundamento curricular), com base em cinco áreas: Linguagens e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências da natureza e suas Tecnologias; Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; Formação Técnica e Profissional. Segundo a lei, a organização das áreas citadas deve ser feita de acordo com critérios estabelecidos em cada sistema de ensino. 

Uma primeira leitura do texto legal pode criar a falsa ideia de que o Novo Ensino Médio amplia as possibilidades de escolha dos estudantes, permitindo que cada jovem aprofunde seus estudos nas áreas de conhecimento de seu interesse. Porém, o primeiro aspecto importante que deve ser observado sobre a lei, é que ela não obriga as redes de Ensino a ofertarem itinerários formativos que contemplem todas as áreas de conhecimento e tão pouco obriga os sistemas de Ensino a garantirem a cada estudante que ele poderá cursar o itinerário que escolher. Com isso, as limitações físicas, materiais e de força de trabalho das redes de ensino públicas têm levado a maioria das escolas a ofertarem poucos itinerários formativos, limitando as possibilidades de escolha dos estudantes da rede pública. Segundo levantamento realizado pelo Sindicato dos Trabalhadores no Ensino Público do Mato Grosso (Sintep-MT), nas 264 escolas-piloto, que começaram a implementar o Novo Ensino Médio, em 2020, cada escola oferta, em média, apenas dois itinerários formativos (currículo de aprofundamento) para seus estudantes [1]. Portanto, na prática, ao invés do Novo Ensino Médio ampliar as possibilidades de escolha dos estudantes da rede pública, ele, na verdade, limitou as possibilidades de escolha. Isso porque, os estudantes são obrigados a optarem por um dos dois itinerários formativos ofertados por sua escola, mesmo que não tenham nenhum interesse ou aptidão por estes currículos de aprofundamento.

Desse modo, até mesmo a ampliação da carga horária do Ensino Médio estabelecida pela Lei 13.415, de 2017, pode ser questionada em sua aplicação prática. Embora a lei estabeleça uma ampliação de 2.400 horas para 3.000 horas na carga horária do Ensino Médio, ela limita a carga horária destinada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) a 1.800 horas, o que significa uma redução de 600 horas em relação as disciplinas convencionais, que constituem a BNCC. Com isso, a carga horária destinada a BNCC diminuiu 25 %, devendo ser complementada pelos itinerários formativos, entendidos como currículos de aprofundamento, que devem totalizar 1.200 horas, das 3.000 horas da carga horária total do Novo Ensino Médio. Oras, se cada escola pública consegue ofertar, em média, apenas dois itinerários formativos, isso significa que os estudantes tiveram uma redução na carga horária destinada a BNCC e não possuem a escolha de complementar estas horas com currículos de aprofundamento em todas as áreas do conhecimento. Ou seja, na prática, os estudantes da rede pública tiveram uma redução no número de aulas de algumas disciplinas que não foram contempladas pelos itinerários formativos ofertados por suas escolas.

Além disso, a falta de professores e de estrutura física impedem parte das escolas públicas de garantirem que cada aluno irá cursar o itinerário formativo que escolheu, dentre os que são ofertados por sua escola. Com isso, o que deveria ser uma opção feita pelo estudante, na prática se tornou uma imposição das escolas, já que estas não possuem as condições mínimas para garantirem que a escolha do estudante seja respeitada. Em entrevista ao Sintep-MT, Geovana Rosa Affeldt, diretora da escola estadual Tuiuti, de Gravataí – RS, afirmou que: “Essa questão dos alunos poderem optar por áreas não têm como acontecer aqui, porque nós não temos professor, não temos espaço para isso” [2]. A dificuldade relatada pela diretora, Geovana Rosa Affeldt, parece não ser exclusividade da rede de ensino pública do Rio Grande do Sul. Segundo Janet Baez, estudante da escola estadual Adenilson Franco, em Franco da Rocha – SP, ela também não pôde cursar o aprofundamento curricular na área que desejava, apesar de sua escola ofertar 4 itinerários formativos diferentes. A estudante declarou para o Jornal Folha de São Paulo, que:

“Disseram que não tinham como atender a vontade de todo mundo, que tinham que organizar as turmas pra ficarem todas com o mesmo tamanho. O pior é que, além de não ter estudado a área que eu queria, ainda diminuíram o tempo das aulas normais para ter os itinerários. Eu quase não estudei matemática, química e física” [1].

Segundo a mesma reportagem, a estudante, que cursa o 3º ano do Ensino Médio ainda relatou que tem apenas uma aula por semana de matemática e uma de português. Com isso, podemos perceber que a promessa de ampliação da carga horária do Ensino Médio, na prática, significou a redução na carga horária destinada as disciplinas da BNCC para milhares de estudantes das redes públicas, em todo o país. Ao mesmo tempo, a expectativa de cursar uma grade curricular com maior aderência aos interesses dos estudantes também não se confirmou, já que a grande maioria das escolas públicas conseguem ofertar poucos itinerários formativos e não são capazes de assegurar que cada estudante curse o currículo de aprofundamento que deseja.

Por outro lado, os problemas decorrentes da implementação do Novo Ensino Médio nas redes públicas de ensino parecem não ser compartilhados pelos sistemas de ensino particulares. Isso porque, em geral, a rede privada possuí uma infraestrutura mais adequada para a oferta de diversos itinerários formativos, laboratórios equipados, não sofrendo com a falta de espaço físico, de recursos materiais e de mão-de-obra. Para ilustrarmos esta questão, podemos citar os casos das escolas particulares Farroupilha e Anchieta, ambos de Porto Alegre. Em entrevista dada ao Sintep – MT, a coordenadora do colégio Farroupilha, Daiane Modelski, afirmou que no primeiro ano do Ensino Médio o Colégio optou por trabalhar a Formação Geral Básica, deixando a escolha dos itinerários formativos para o segundo. Porém, para auxiliar os estudantes na escolha dos itinerários formativos a escola ofereceu, no primeiro ano, 10 disciplinas optativas no primeiro semestre e 9 optativas no segundo semestre, nas mais diferentes áreas do conhecimento [4]. Já o colégio Anchieta ofertou 4 itinerários formativos diferentes, cada um dividido em dois temas: “Inovação, Tecnologias e Pesquisa Científica (dividida em Inteligência financeira e Ciência e tecnologia); Saúde e Bem-Estar Social (dividida em Saúde individual e coletiva e Química do cotidiano); Humanidades e Desenvolvimento Pessoal (dividida em Política, direito e sociedade e Cidadania global em inglês); e Processos Criativos (Linguagens artísticas e Pensamento computacional)” [5]. O colégio ofertou ainda as disciplinas eletivas “Cinema e História; Esportes/práticas corporais; Teatro; Música e neurociência; Jogos digitais; Dança e saúde mental; e Geopolítica”[6].

Com isso, o que podemos observar é que, na prática, o que o Novo Ensino Médio tem ocasionado é o agravamento da desigualdade na realidade de escolas públicas e privadas. Por um lado, nas redes de ensino públicas os estudantes estão sofrendo com a redução no número de aulas destinadas a BNCC e com a imposição de poucos itinerários formativos, muitas vezes inadequadas aos interesses de seus alunos. Por outro lado, nas redes de ensino particulares os estudantes não sofreram com os impactos da redução nas aulas destinadas a BNCC, já que estão podendo cursar diversas disciplinas optativas, nas mais diversas áreas de ensino, conseguindo optar entre diversos itinerários formativos em todas as áreas estabelecidas pela lei 13.415, tendo suas escolhas respeitadas pelas instituições de ensino. Portanto, a Reforma do Ensino Médio produziu um verdadeiro abismo em relação as oportunidades encontradas pelos estudantes das redes públicas e particulares de ensino, criando uma escola para os ricos e outra completamente diferente para os pobres. Desse modo, a suspensão do Novo Ensino Médio, por parte do governo federal, com o objetivo de reavaliar o modelo é fundamental para que o poder público não sacrifique gerações inteiras de estudantes pobres, com um ensino precarizado e extremamente desigual se comparado ao que é ofertado para os ricos, nas escolas particulares. Ou seja, enquanto as escolas públicas não tiverem condições estruturais e de força de trabalho para ofertar todos os itinerários formativos, com qualidade, e respeitando as escolhas de cada estudante, o Novo Ensino Médio será sinônimo de precarização e de retirada de oportunidades para a maioria dos estudantes brasileiros.

Se demonstramos até aqui que o Novo Ensino Médio não é interessante para os estudantes das redes públicas de ensino, resta retomarmos a pergunta realizada anteriormente: para quem interessa o Novo Ensino Médio?

Em primeiro lugar, podemos considerar os interesses de fundações empresariais interessadas em lucrar com as possibilidades abertas pelo Novo Ensino Médio. A lei 13.415 estabelece que “para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento” [7]. Oras, se já está constatado que a maioria das escolas públicas não possuem as condições mínimas para ofertar o Novo Ensino Médio, muitas redes de ensino podem justificar a destinação de recursos públicos para instituições privadas ofertarem o que seria de responsabilidade do Estado. Além da problemática transferência de verbas públicas para instituições privadas, é ainda mais preocupante a possibilidade da oferta destes conteúdos de maneira remota, o que atende apenas aos interesses destas instituições privadas, preocupadas em diminuir os custos para aumentar sua margem de lucro. Levando em conta a realidade da maioria das escolas públicas, que enfrentam problemas com falta de internet, laboratórios e equipamentos, a possibilidade da oferta de parte do currículo por meio da educação a distância certamente não atende aos interesses dos estudantes. Isso para não mencionar as possíveis dificuldades dos alunos no que se refere a adaptação necessária para a aprendizagem por meio da educação à distância.

A Reforma do Ensino Médio também pode interessar às instituições de ensino privadas, já que ao instituir um verdadeiro abismo entre as escolas públicas e privadas, o modelo também pode significar a garantia de estudantes para as redes privadas, já que a escola pública deixa de ser uma alternativa minimamente atrativa para as famílias que possuem alguma capacidade financeira de arcar com os custos de uma educação privada. 

Além disso, o Novo Ensino Médio também pode atender aos interesses de governos estaduais com visões neoliberais que enxergam na educação pública um gasto desnecessário. Isso porque a Reforma do Ensino Médio pode representar uma possibilidade de redução de custos com profissionais da educação. Se qualquer professor pode assumir aulas em qualquer área dentro dos itinerários formativos, o poder público fica desobrigado de promover concursos para a contratação de professores especialistas, o que diminui a demanda de contratação de docentes. Além disso, no que se refere ao ensino profissionalizante, a lei 13.415 introduz a possibilidade de que profissionais sem formação na área de educação atuem como professores. O § 3º, IV, estabelece que as escolas podem contratar “profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais da rede pública ou privada ou das corporações privadas em que tenham atuado” [8].

Por fim, o Novo Ensino Médio, ao permitir a redução no número de aulas de disciplinas da BNCC que trabalham a formação cidadã, a participação política e que fortalecem o senso crítico dos estudantes, abre margem para que a escola pública seja transformada em um espaço de formação neoliberal, voltada para a garantia de força de trabalho acrítica e disciplinada para ser explorada pelo grande capital. Na década de 1930, Anísio Teixeira já criticava o modelo de escola paternalista, destinada a educar os governados, ou seja, os que iriam obedecer e fazer, em oposição aos que governariam, ou seja, que iriam mandar e pensar (TEIXEIRA, 1936). Infelizmente, o Novo Ensino Médio representa um regresso a este modelo de educação criticado por Teixeira, já que enquanto os estudantes das redes públicas são privados de disciplinas que estimulam a formação de cidadãos ativos, capazes de pensar de maneira crítica, os estudantes da rede privada continuam tendo acesso a estas disciplinas por meio de disciplinas optativas e itinerários formativos variados.

Vale lembrar que a precarização do ensino público, com a redução da carga horária destinada a BNCC, provavelmente terá impacto na formação dos estudantes da rede pública, que certamente enfrentarão maiores dificuldades para a inserção e para a permanência no Ensino Superior. Com isto, o desejo expresso pelo ex-ministro da Educação bolsonarista, Milton Ribeiro, de que as universidades deveriam ser para poucos, apenas reservadas para uma elite intelectual, pode ser efetivado por meio do Novo Ensino Médio.

Portanto, a suspensão do Novo Ensino Médio por 60 dias é um primeiro passo importante para que o poder público possa corrigir a rota desta grande injustiça social instituída pela Lei 13.415. Porém, a medida tomada pelo governo federal só produzirá efeitos importantes se a sociedade, como um todo, se apropriar da discussão da temática, para que as injustiças do Novo Ensino Médio possam ser corrigidas. Neste sentido, a mídia possui um papel importante para estimular o debate e para fornecer elementos que permitam a população uma análise crítica do tema, extrapolando opiniões rasas oferecidas por alguns políticos e comunicadores comprometidos com os interesses daqueles que são os verdadeiros beneficiados pela implementação do Novo Ensino Médio. 

Notas 

[1] https://sintep.org.br/sintep/Utilidades/view_noticia/escolha-para-quem-novo-ensino-medio-aprofunda-abismo-entre-redes-publica-e-privada/i:1781

[2] https://sintep.org.br/sintep/Utilidades/view_noticia/escolha-para-quem-novo-ensino-medio-aprofunda-abismo-entre-redes-publica-e-privada/i:1781

[3] https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2023/03/itinerarios-do-novo-ensino-medio-sao-impostos-e-ate-sorteados-aos-alunos.shtml

[4] https://sintep.org.br/sintep/Utilidades/view_noticia/escolha-para-quem-novo-ensino-medio-aprofunda-abismo-entre-redes-publica-e-privada/i:1781

[5] https://sintep.org.br/sintep/Utilidades/view_noticia/escolha-para-quem-novo-ensino-medio-aprofunda-abismo-entre-redes-publica-e-privada/i:1781

[6] https://sintep.org.br/sintep/Utilidades/view_noticia/escolha-para-quem-novo-ensino-medio-aprofunda-abismo-entre-redes-publica-e-privada/i:1781

[7]  BRASIL, Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017.

[8] BRASIL, Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017

REFERÊNCIAS:

BRASIL, Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017.

TEIXEIRA, Anísio S. Educação para a democracia: Introdução à administração educacional. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1936.

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Diogo Comitre é professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da USP