Tuesday, 14 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O Estado de S. Paulo

LIBERDADE DE IMPRENSA
Roberto Muylaert

A censura está de volta

"Nos 20 anos em que durou o regime militar, não era necessário ser de extrema esquerda para se defrontar com a censura a cada passo – como empresário editorial, profissional de imprensa ou mesmo como leitor.

As notícias proibidas pelos censores não podiam ser deixadas em branco no jornal, assim como não era permitido fazer menção no próprio veículo censurado às restrições impostas às redações, onde um censor tinha sempre cadeira cativa.

Foi quando surgiram os famosos trechos de Os Lusíadas, de Camões, no Estado de S. Paulo e as receitas culinárias no Jornal da Tarde em substituição aos parágrafos eliminados pela censura.

Na televisão, os produtores precisavam assistir aos programas novos, ainda não exibidos, com um censor sempre ao lado, que poderia interromper a exibição a qualquer momento para esclarecimentos e exigência de mudanças.

No programa Vox Populi, criado por mim e Carlos Queiroz Telles na TV Cultura, na década de 70, a entrevista sensação seria a de um metalúrgico carismático, líder sindical de São Bernardo do Campo (SP), em sua estreia na televisão.

Era o primeiro programa de entrevistas na TV permitido pelo regime militar, que partia do princípio de que, ao aprovar um programa como aquele, em emissora com audiência restrita, estaria mostrando certa liberalidade em relação ao controle que exercia sobre as mídias, ao mesmo tempo em que corria risco tolerável, não tão grande quanto se a transmissão fosse numa emissora comercial.

Aquele Vox Populi era aguardado com expectativa pelas autoridades do governo, que desejavam descobrir o que passava na cabeça daquele líder que julgavam de extrema esquerda, chamado Lula, e que riscos estariam correndo quando ele expusesse seus pontos de vista e a sua oratória na TV.

No estúdio da TV Cultura, num domingo à noite, com a emissora quase deserta, enquanto se aguardava, por via das dúvidas, o início da transmissão do programa já gravado, irrompe um oficial do corpo de paraquedistas exigindo, enérgico, a fita do programa, que, segundo ele, não iria ao ar de forma alguma.

Depois de vários telefonemas para as autoridades que aguardavam a transmissão, mais a interferência do governador de São Paulo, o programa foi oficialmente liberado e exibido ao impaciente oficial, que precisou se conformar, bastante irritado, com a situação de fato, embora ele fosse um livre atirador, agindo por conta de um grupo que não concordava com esse tipo de abertura.

Outro fato testemunhado por inúmeros jornalistas foi o enterro de Vladimir Herzog, conduzido com muita rapidez para evitar incidentes e presenciado por alguns presos que estavam sendo torturados nos quartéis, simultaneamente a Herzog, e que foram conduzidos à cerimônia, por tempo reduzido, apenas para provar que estavam vivos.

No culto ecumênico de sétimo dia de Herzog, na catedral da Sé, ninguém estranhou quando um ‘acidente’ interrompeu o trânsito na Av. Nove de Julho e limitou o grande afluxo de pessoas que se dirigiam à Sé.

Assim como foi considerado compatível com a situação política alguns andares de um edifício comercial contíguo à catedral estarem ocupados por uma dezena de fotógrafos oficiais, cuja missão era fazer o registro de todos os que chegavam à missa.

Todas essas peripécias precisavam ser encaradas, na época, por aqueles que deviam conviver com as restrições, por obrigação profissional, num regime de exceção.

Mas agora, num Estado democrático de Direito, torna-se quase impossível entender a censura imposta há três meses ao jornal O Estado de S. Paulo, proibido de divulgar informações sobre Fernando Sarney – filho do senador José Sarney -, indiciado pela Polícia Federal por falsificação de documentos para favorecer empresas em contratos com estatais.

Uma clara violação do direito de livre expressão, garantido pela Constituição brasileira e por convenções internacionais subscritas pelo Brasil. O processo foi transferido para a Justiça Federal de primeira instância do Maranhão, capitania em que a família Sarney exerce reconhecida influência.

Fica assim conspurcado o direito da sociedade brasileira à livre informação sobre assuntos de interesse público, numa situação esdrúxula, em que a censura prévia dos tempos da ditadura parece ressurgir das cinzas, com renovado e descarado vigor, em pleno regime democrático.

*Roberto Muylaert , de 74 anos, é jornalista, editor, escritor e presidente da Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER). Presidiu a TV Cultura de São Paulo (1986 a 1995) e foi ministro-chefe da Secretaria da Comunicação Social (1995, governo FHC)

Este artigo foi originalmente publicado na ‘Folha de S. Paulo’ na sexta-feira, dia 23"

 

ANÁLISE
Leonard Downie Jr. e Michael Schudson

Um novo modelo de jornalismo

"A cobertura jornalística que cobra responsabilidades das pessoas com poder e influência é parte vital da vida democrática americana, especialmente em locais com jornais diários que ainda estão dando lucro e cujos proprietários têm o espírito público necessário para manter um número substancial de equipes de jornalistas. Esse jornalismo hoje corre riscos, como também as bases econômicas dos jornais que se sustentam com a publicidade.

A sociedade americana precisa assumir a responsabilidade coletiva de apoiar a imprensa de notícias, como ocorreu, a um custo muito maior, com a educação pública, o sistema de saúde, os avanços científicos e a preservação cultural, por meio de combinações variadas de filantropia, subsídio e política governamental. Pode não ser fundamental salvar ou promover um jornal em particular, incluindo os veículos de informação impressos. O essencial é preservar o trabalho de reportagem confiável, original, independente, lucrativo ou não, não importa em que veículo ele apareça.

Não acreditamos que os jornais desaparecerão, seja na forma impressa ou online. Mas as equipes de reportagem serão muito menores, com funções reduzidas. Ao mesmo tempo, a internet permitiu o surgimento de novas maneiras de coletar e distribuir as notícias que tornam possível uma reconstrução do jornalismo americano.

Jornalistas que deixaram a imprensa escrita lançaram sites de notícias locais em muitas cidades grandes e pequenas. Outros iniciaram projetos não lucrativos de jornalismo investigativo e serviços de notícias comunitários em universidades vizinhas, como também organizações especializadas em reportagens investigativas no plano estadual ou nacional.

Outros estão trabalhando com moradores locais para produzir blogs de notícias para a comunidade. Os próprios jornais vêm colaborando com outros veículos de informação, incluindo empresas recém-abertas e bloggers, para complementar suas pequenas equipes de reportagem.

Entre esses novos agregadores de notícias estão não só os jornalistas nas redações, mas também os freelancers, os estudantes de faculdade, bloggers e cidadãos armados com telefones inteligentes. Hoje, o apoio financeiro a esse trabalho vem não apenas de anunciantes e assinantes, mas também de fundações, instituições filantrópicas, universidades e doadores individuais.

Esse ecossistema jornalístico que está emergindo, em que a coleta e distribuição das notícias é muito mais dispersada, tem um grande potencial. Mas ainda é muito frágil. A responsabilidade jornalística, em particular, exige recursos de reportagem significativos, com uma liderança profissional vigorosa e um apoio financeiro confiável, que o mercado não pode mais oferecer da maneira necessária.

Em vez de depender principalmente de um encolhimento dos jornais, as comunidades deveriam ter uma série de fontes diversas de cobertura jornalística. E devem incluir organizações noticiosas não lucrativas e comerciais que possam competir e colaborar entre si, adaptando formas jornalísticas tradicionais às novas formas interativas de comunicação digital.

Num extenso estudo, encomendado pela Escola de Jornalismo da Universidade Colúmbia, A reconstrução do jornalismo americano, a ser publicado esta semana, sugerimos inúmeras fontes públicas de apoio para essa cobertura jornalística: O Internal Revenue Service (Receita Federal) ou o Congresso devem tornar mais claras as regras fiscais de modo a permitir explicitamente que órgãos de notícias locais, novos ou existentes, atuem como entidades não lucrativas ou com lucro mínimo, para receberem doação dedutíveis de impostos, junto com a receita publicitária e outras fontes de renda.

As instituições filantrópicas e fundações precisam aumentar substancialmente o apoio à cobertura noticiosa local – órgãos tanto comerciais como não lucrativos – do mesmo modo que dão suporte a instituições educacionais, culturais e artísticas.

As emissoras de televisão e rádio públicas devem ser completamente reorientadas, com uma reforma e novas medidas apoiadas pelo Corporation for Public Broadcasting (fundo de apoio à rede pública de televisão), para que se possa oferecer uma boa cobertura local de noticiais em cada comunidade atendida por essas emissoras públicas, o que muito poucas oferecem hoje.

As universidades e faculdades precisam se tornar fontes institucionais para a cobertura de notícias local, estadual e de responsabilidade, seguindo a orientação das escolas de jornalismo pioneiras, cuja comunidade de professores e estudantes de jornalismo trabalham em websites de reportagens investigativas e notícias da comunidade.

Um fundo para notícias locais nacional deveria ser criado com as taxas que a Comissão Federal de Comunicações arrecada dos usuários das telecomunicações, emissoras com licença para transmitir programas ou provedoras de Internet. Essas subvenções devem ser feitas por esse fundo para notícias locais, competitivamente, para organizações de notícias locais, para modernizarem seu trabalho informativo e ter recursos para sustentar esse trabalho.

As organizações governamentais, não lucrativas e jornalistas devem aumentar a acessibilidade e utilidade da informação pública, partindo dos governos locais, estaduais e federais, aproveitando os recursos digitais para analisar e usar essas informações na sua cobertura jornalística.

Todas essas são medidas sensatas e possíveis de implementar. Exigem somente uma liderança nas áreas de jornalismo, filantropia, do ensino superior, do governo e do resto da sociedade, de modo a se aproveitar esse momento de mudanças desafiadoras e novo início na mídia para se assegurar o futuro da cobertura jornalística.

*Leonard Downie Jr. é vice-presidente e ex-editor executivo do Washington Post e professor de jornalismo na Universidade do Estado do Arizona. Michael Schudson é professor de comunicação na Escola de Jornalismo da Universidade Columbia."

 

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