Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O escritor e o silêncio

Raduan Nassar, um dos principais escritores brasileiros de todos os tempos, completou 80 anos dia 27 de novembro. Curiosamente, Raduan chama atenção tanto por sua obra esplendorosa (e pouco extensa) quanto pelo abandono (precoce) da literatura, ou por aquilo que ele ainda poderia ter escrito.

Raduan Nassar / Foto Cia das Letras / divulgação

Raduan Nassar / Foto Cia das Letras / divulgação

Desde os anos 1960, quando decide dedicar-se à literatura, ele já se dividia entre a produção rural e as atividades no Jornal do Bairro, semanário fundado pelos irmãos Nassar, do qual foi redator-chefe. Deixa em 1974 a direção do jornal e leva a cabo o projeto cujas primeiras anotações datavam de alguns anos: em poucos meses, trabalhando arduamente, conclui o romance Lavoura arcaica, sua obra de estreia, que acaba de completar 40 anos.

Em 1978, publica a novela Um copo de cólera, cuja primeira versão fora escrita no início da década de 1970 (antes de Lavoura arcaica, portanto). E os contos que compõem o livro Menina a caminho e outros textos, publicado em 1997, datam dos anos 1960 – exceção feita a “Mãozinhas de seda” (produzido na década de 1990). E foi só. Poucos anos após ter estreado, em 1984, Raduan Nassar anuncia o abandono da literatura para se dedicar exclusivamente à produção rural.

Obra

Em Lavoura arcaica, o narrador-protagonista André rememora (reconstrói) a tragédia que assolou sua família. Sufocado pelo discurso endogâmico do pai e pelo excesso de afeto da mãe, André reivindica os seus direitos no incesto secretamente consumado (ou fantasiado?) com a irmã, Ana. E, depois disso, não vislumbra outra alternativa a não ser deixar a casa.

O romance, cuja estrutura é parabólica, divide-se em duas partes: “A partida” e “O retorno”. Na primeira, Pedro, o primogênito, cumpre sua missão e resgata o irmão mais novo do exílio (um quarto de pensão interiorana). Contudo, mudanças irreversíveis abalaram a estrutura familiar. “O retorno”, mais curto e arrebatador, marca a dissolução da família. Em lugar da verborragia do pai e do próprio André, no fim resta a “dor arenosa do deserto”.

Já na novela Um copo de cólera, há o embate entre as personagens “ele” e “ela”, disparado por um acontecimento corriqueiro – o rombo feito por uma comunidade de saúvas na “cerca-viva” (feita de plantas) da chácara. As formigas, “tão ordeiras”, violam a propriedade. O chacareiro não é senhor da própria chácara.

O tempo da novela é curto e decisivo. Com efeito, a linguagem colérica e teatralizada engolfa as personagens, chegando ao extremo de, numa espécie de nascimento às avessas, abrir-se “inteira e prematura pra receber de volta aquele enorme feto”.

Continente e conteúdo

Se, em Lavoura arcaica, a imagem do corpo de André coberto de folhas é alusiva do retorno à natureza, além e aquém da vida, a imagem da cerca, em Um copo de cólera, é emblemática da busca por acolhimento, proteção, pertencimento. Brecha larga, híbrida, onde continente e conteúdo se confundem.

Ora mais coléricos, ora mais líricos, os textos de Raduan Nassar falam eminentemente dos contrastes, empreendem retornos, questionam as (im)possibilidades para que ocorram mudanças. A linguagem, arduamente trabalhada, dá muitos frutos, e a questão da ressignificação daquilo que se vive – daquilo que se é – está sempre presente.

Se, como propôs o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, a linguagem é silêncio, a obra de Raduan Nassar está aí para confirmá-lo. Poucos, no entanto, dão conta de reinventar a palavra nessa sua máxima potência. Raduan Nassar é uma dessas pessoas.

Portanto, não há nada a estranhar no fato de ele ter deixado de escrever. Aliás, seu primeiro livro publicado (Lavoura arcaica) foi o último a ser escrito – ao estrear, Raduan já havia escrito tudo, sua “safrinha”, como ele diz. Avesso ao barulho mundano, ao jogo político, à hipocrisia, o escritor não optou pelo silêncio apenas ao deixar a literatura: Raduan Nassar escreveu o silêncio.

Ao celebrar os seus 80 anos de vida, recordo-me de sua inconfundível gargalhada, de seu olhar afetuoso e profundo, de sua humilde generosidade. Parabéns, Raduan, e muito obrigado pela safrinha. Ela salva vidas.

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Renato Tardivo é escritor e psicanalista