Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

A crise orgânica do sistema de produção capitalista

A arché da crise capitalista/ Mas sei que nada é divino/ Nada, nada é maravilhoso/ Nada, nada é sagrado/ Nada, nada é misterioso (Belchior)

Para a filosofia, nada é divino, nada é misterioso, nada é causa de si mesmo. Em suma: nada é um fetiche. Tudo tem um princípio. Por princípio podemos entender o ponto de partida de uma produção ou aquilo do qual parte um conhecimento, por exemplo: as premissas de uma demonstração. Assim, as incongruências dos ideólogos do capitalismo estão justamente na falta e/ou omissão em explicitar a origem ou princípio da crise orgânica do sistema. O modo de produção capitalista, na figura dos economistas liberais, postulou ser um princípio de autorregulação. Tal sistema, por não poder ser refutado, revela o seu caráter totalitário e autocontraditório, conforme a conotação de Karl Marx.

Quando me perguntam no que Marx é atual, eu respondo: Marx é atual, porque, o seu objeto de análise e critica, o sistema de produção capitalista é atual e sua crise é atual. No que as proposições marxianas sobre o sistema de produção social capitalista são atuais? No seu processo de revolucionar e relativizar as estruturas sociais; no seu modo global de se expandir; na forma de concentração de renda e riqueza; na forma de exploração moderna do trabalho; na depredação da na natureza; no seu antagonismo e nas suas contradições próprios do processo que transcende o produto da crise sistêmica capitalista. Mais do que todos estes fenômenos, Marx também buscou analisar organicamente, para além dos fenômenos que são típicos do sistema capitalista, as causas das crises, ou seja, o nôumeno para além do fenômeno, uma elucubração filosófica que transcende ao momento cronológico do fato, um objeto de conhecimento intelectual puro. O que precisamos entender sobre a crise orgânica do sistema social de produção capitalista? Para além de uma análise superficial e simplória da crise do momento, faz-se necessário realizarmos uma filogênese da crise, uma análise do desenvolvimento do embrião e o desenvolvimento crítico do paradigma capitalista e, no que tange ao homem e a sociedade como um todo do paradigma ora em colapso, uma ontogênese, o seu impacto no ser social, o prejuízo à sociedade, a redução do homem ao nada, ao niilismo.

Natureza da crise

O que temos testemunhado é um discurso sofista por parte da grande mídia, talvez por ignorância, pronto para falar da crise sem questionar a essência, a substância da desta. Este discurso é, sofisticamente ideológico, pretendendo nos convencer de que a crise não é sistêmica e orgânica. E, até de nos convencer de que, nesse momento quem deve pagar o preço da crise é o trabalhador. Mas como nós podemos, por nosso lado, questionar essa pretensão do sofista?

A única saída, a melhor e a mais difícil, seria a de fazermos emergir (aparecer) o próprio discurso como discurso, ou seja, a sua própria essência da falsidade do discurso e, também a essência do objeto sobre o qual a mídia sofista está fazendo o discurso.

Estamos, sim, vivendo uma crise, toda a mídia fala desta, nisso não podemos reclamar da mídia porque, naturalmente é papel da mídia falar sobre fenômenos como estes, sobretudo quando se tem um desdobramento sobre a vida das pessoas, onde estas são profundamente afetadas pelo que está acontecendo. Mas, o que mais tem me chamado a atenção é a forma como a mídia tem abordado o tema. É lugar comum ouvirmos no rádio, assistirmos na TV, lermos nos jornais escritos, uma ênfase muito grande a temática. Só que o tratamento é dado de maneira fatual, pontual, ou seja, trata-se a crise de uma forma particular. Fala-se da crise do setor imobiliário, das instituições financeiras, das montadoras, das empresas de seguros, da construção civil, nos países, como se, o Estado Nação fosse o responsável pelo fenômeno. Chega-se até a cogitar e fazer inferências de quais países terão condições de sair primeiro da crise e. E, todo este trato dado única e exclusivamente a partir de clichês, sem nenhuma reflexão teórica e ideológica, e, sem uma análise profícua sobre o que veio à tona agora, mas que já é praxe do arquétipo capitalista é falacioso, sofistico. Tem faltado à mídia fazer uma ontogênese e uma filogênese sobre o nôumeno do fenômeno crise. Em suma: falta fazer uma rebuscada sobre a origem, uma arché do fenômeno e, tem faltado, também, uma análise mais acurada da crise a partir de uma dialética, de como um sistema (tese) se confronta com um universo humano que não tem como conviver com um modelo de produção que é o seu outro (antítese). Em síntese, o que a mídia tem feito com certa maestria é tratar da natureza da crise, e não da crise de natureza-substânciado sistema do capital. Tem se falado do aspecto cronológico das crises, em detrimento das questões kairológicas, que é a crise vivida pelo ser humano.

O totalitarismo midiático

Tem se equiparado a crise atual com a de 1929-1933, esquecendo-se que aquela foi uma crise cíclica, de um ciclo do capital, e, esta é uma crise estrutural, toda a estrutura global está em crise. Devendo a isto, em parte, ao fato de o avanço do capital ter chegado a uma escala global, chegando a esta esfera, é claro que todas as contradições vêm a tona tanto territorialmente como à nível de objeto. O objeto capital em sua essência está em crise. Ninguém, até agora, no interior da mídia teve a audácia e a coragem de dar umas cutucadinhas nos figurões que fazem a apologia do “deus mercado”, da teologia protestante da prosperidade, dos defensores da “mão invisível” do mercado. Ninguém provocou Fukuyama perguntando para ele se realmente a história haveria chegado ao fim. Mas, deixemos as provocações de lado e vejamos quatro fatores basilares que, segundo IstvánMézáros caracterizam a atualidade da crise. São eles: primeiro, seu caráter universal, em lugar de uma esfera restrita (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção, aplicando-se a este ou aquele tipo de trabalho, com sua gama específica de habilidades e graus de produtividade, países etc.); segundo, seu alcance verdadeiramente global (no seu sentido mais literal e ameaçador do termo) em lugar de um conjunto particular de países (como foram todas as principais crises do passado); terceiro, sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores; quarto, em contrastes com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, sutil.

Como se percebe, as crises atuais são como “fogo de monturo”, não acontecem de forma espalhafatosa, mas de uma forma mais discreta. O porquê isto ocorre? Porque os meios de comunicação de massa capitalista são os menos democráticos e transparentes de toda história humana, talvez até menos democráticos do que os meios medievos, porque estes são demagogicamente orientados a ocultar a realidade contraditória. O totalitarismo midiático destes é implícito, enquanto o totalitarismo daqueles era explícito. Mas, apesar deles, uma explosão assustou o mundo no final de 2008 e início de 2009, e ora insiste em permanecer, e não há perspectivas de saída brevemente, enquanto sobreviver a essência do capitalismo. Não adiante criar planos bilionários para salvar países, criar programinhas assistenciais, nada, nada vai salvar o que já nasceu contaminado psicossocialmente com uma grave patologia. Tudo isto, não passa de um ato de “enxugar gelo” escondido pra ninguém ver.

Bode expiatório

Neste momento, não tem como manter a crise sob sigilo, conforme nos relata Stván Mészáros em seu livro “Para Além do Capital”. “Aqui temos que nos concentrar em alguns componentes da crise em andamento. Se, no período pós-guerra, tornou-se embaraçosamente antiquado falar de crise capitalista – mais outro sinal da postura defensiva do movimento do trabalho – isso foi devido não apenas à operação prática bem sucedida da maquinaria que desloca (por difundir e por retirar a espoleta explosiva) as próprias contradições”. O que se verificou no pós-guerra foi uma ofensiva midiática e por meio dos meios intelectuais conservadores da educação em maquinar um “deus mercado”. Para forjar uma falsa consciência de que tudo que representava a esquerda e/ou o Estado, era maléfico. Tudo que representava a esquerda era pintado como demoníaco. O debate ideológico foi subtraído à inexistência, tudo operou sob a cartilha do laissez faire e da ditadura do mercado. Neste cenário, se mistifica a ideologia capitalista como forma única e o fim do debate ideológico. Foi um processo de mistificação ideológica (do fim da ideologia ao triunfo do capitalismo organizado e á integração da classe trabalhadora etc.) que apresentou o mecanismo de deslocamento sob o disfarce de remédio estrutural e solução permanente.

Naturalmente, que no momento atual não tem mais como ocultar a crise. Todo o edifício do disfarce para que a crise não aparecesse e não fizesse muito alarde, acabou por ruir, e a crise bate à porta do capital, nos atinge como um tufão. Quando já não é mais possível ocultar as manifestações da crise, a mesma mistificação ideológica que ontem anunciava a solução final de todos os problemas sociais, hoje atribui o seu reaparecimento a fatores puramente nacionais, Grécia, Espanha Estados Unidos, Europa etc. O que se vê é, mais uma vez, a ideologia do capital negar a sua crise estrutural tentando encontrar subterfúgios e válvulas de escape. O bode expiatório da vez são os países que precisam de salvação.

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[José Valmir Dantas de Andrade é filósofo, educador e tem pós-graduação em Filosofia]