Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Metamorfose às avessas

Um dos livros mais famosos de todos os tempos, A Metamorfose, de Franz Kafka, como todos sabem fala do bizarro drama do personagem Gregor Samsa, que num belo dia acorda transformado numa barata. É chocante e ao mesmo tempo comovente acompanhar o esforço do jovem caixeiro-viajante Samsa para se adaptar à sua nova e repelente condição, na genial analogia em que o grande escritor checo critica o poder destrutivo embutido no excesso de responsabilidade e na missão de agradar a todos. Pois metamorfose inversa deu-se com a Copa do Mundo made in Brazil, que de inseto asqueroso e enjeitado em seu próprio reduto, repentinamente tornou-se belo e formoso e caiu nas graças de todo mundo.

No fundo, porém, aconteceu o que era perfeitamente previsível: o país e o mundo renderam-se a Copa à brasileira, ao nosso estilo de levar as coisas numa boa. Com as restrições e o medo de dar vexame aos poucos se dissipando, à medida que o clima festivo foi tomando conta, tudo o que era motivo de preocupação e azedume vai ficando em segundo plano. Aos poucos até o tão questionado legado da Copa vai dando as caras, com a presença acima da expectativa de milhares de torcedores de todos os recantos, principalmente – como era de esperar – dos vizinhos sul-americanos, ensejando uma grandiosa confraternização multirracial nunca antes vista, ainda mais que o nível da competição já está considerado o melhor de todos os tempos. O que, somado ao bom andamento das coisas até aqui, acaba por exorcizar os demônios invocados pela imprensa nos últimos meses e, de quebra, mostra que não somos uma terra de desordeiros e bandidos. Muito pelo contrário.

Não obstante, é, sobretudo com alívio, que se observa a gradativa dissipação dos temores que povoavam os comentários e noticiários aqui e lá fora – por sinal, plenamente justificáveis, dada a convergência de fatores adversos, da deterioração da economia ao descontentamento popular. De fato, o que se viu até aqui, além da grata surpresa por tudo estar correndo bem, mesmo que por linhas tortas, consegue a proeza de resgatar a imagem do país do limpo em que se encontrava. E não é para menos, com os jogos transcorrendo dentro da normalidade, sempre com os estádios cheios, mesmo nos mais inexpressivos, a infraestrutura dando conta e a população abraçando os visitantes.

Boas intenções…

Algumas eventuais escaramuças e problemas pontuais não chegaram a comprometer, tais como a falta de comida em alguns deles, o serviço de som do Beira-Rio que deixou franceses e hondurenhos sem hino, a demora para o acesso do grosso do público no jogo entre Colômbia e Costa do Marfim em Brasília; e o mais grave até aqui, a invasão de torcedores chilenos ao setor reservado à imprensa, no Maracanã, no afã de ver sua seleção fazer história ao homologar a eliminação precoce da Espanha. Nada que roubasse a cena, de qualquer forma.

E não só com os jogos vai tudo de vento em popa. O deslocamento de grandes contingentes de torcedores aos quatro cantos do país também tem se dado com surpreendente tranquilidade. Sem problemas nos aeroportos e na movimentação nas cidades, a acolhida tem estado à altura da fama de hospitalidade e cordialidade do povo brasileiro. Mesmo em relação aos hermanos argentinos, que vieram em peso a ponto de se sentirem em casa no Maracanã e no Mineirão, por enquanto é tudo lua de mel. Se vai continuar assim até a final, é outra história, ainda mais se Neymar e Messi se cruzarem numa esperada decisão no dia 13 de julho no Maracanã.

A mídia não se faz de rogada, é claro. Com a televisão ditando o tom, a imprensa escrita não teve outra alternativa senão aderir ao frenesi reinante, deixando de lado o viés marrento de até outro dia. Se bem que sem perder de vista os desdobramentos do ainda debatido episódio dos insultos dirigidos a presidente Dilma Rousseff por ocasião do jogo inaugural da Copa, que serviram de senha para que o ex-presidente Lula retomasse a velha estratégia de acirramento da polarização política.

Daí que nesse ínterim, não faltaram editoriais e artigos candentes da imprensa anti-petista contra a reintrodução do tom beligerante cunhado pelo lulopetismo, que faz do discurso em torno da divisão de classes – de um lado a elite branca, de outra o proletariado – o ponto nevrálgico da campanha pela reeleição de Dilma. Críticas a Lula e loas ao candidato tucano Aécio Neves, que aproveitou o vácuo para reforçar o discurso vanguardista em prol da elevação do nível dos debates, como se de boas intenções o inferno não estivesse cheio. Ou seja, como se o saco de maldades do tucanato também não fosse sem fundo.

Maturidade e juízo

Obviamente, a reversão de expectativas em relação à Copa está longe de significar que o mesmo possa ocorrer no que diz respeito à atual conjuntura social e política. Com o reconhecimento da existência de uma maior conscientização popular dos problemas do país, o próprio desempenho da seleção brasileira não parece capaz de mudar esse novo status quo, ou seja, servir de plataforma para governo ou oposição com vistas às eleições presidenciais do fim do ano. Mesmo com todos os benefícios que uma eventual conquista do hexa possa trazer, difícil acreditar que isso mude a percepção das pessoas sobre questões que já vem sendo debatidas há um bom tempo. Ou que os xingamentos ouvidos no Itaquerão possam se transformar em aplausos, por conta do almejado caneco.

Não que a imprensa esteja sugestionada por esse, digamos, momentâneo torpor decretado pela festa ludopédica. Trata-se, na verdade, muito mais de uma guinada meramente oportunista e momentânea, no melhor estilo vira-casaca característico da labuta midiática, que não dá ponto sem nó, como se sabe. Tanto é que mesmo com a cobertura da Copa monopolizando o interesse e tomando conta dos noticiários, notórios guetos jornalísticos não dormem de touca e aproveitam qualquer brecha para destilar sua peçonha político-ideológica sob qualquer pretexto. Que o diga o pessoal da ESPN, taxados de gaiola das loucas do petismo e por aí afora pelo contumaz colunista Reinaldo Azevedo, em seu blog no site de Veja, em troca de farpas com o editor-chefe da emissora, José Trajano.

Voltando ao âmbito da Copa, bem mais agradável com certeza, é natural que agora alguns embandeirados e marombeiros de primeira hora se sintam à vontade para posar de vestais da pátria amada, idolatrada, salve, salve, e desancar os que de algum modo criticaram e fizeram restrições a realização da Copa no país. Pois alfafa à vontade e bom proveito para eles, posto que só os alienados e irresponsáveis para relevar a inconveniência e os riscos que o país correu com a promoção de um evento deste custo e envergadura. Daí o entendimento que as críticas e as restrições propaladas até outro dia foram muito mais uma demonstração de maturidade e juízo do que outra coisa. Postura da qual ninguém precisa se envergonhar ou abjurar por conta de uma natural reversão de expectativas.

O comedimento e a soberba

Razão pela qual estou à vontade para dar a mão à palmatória e reconhecer que o fascínio e a paixão futebolística, felizmente, falaram mais alto. Mesmo prevendo em meus artigos anteriores que isso fatalmente iria acontecer à medida que a competição avançasse, o fator humano tem feito com que mesmo as expectativas mais otimistas venham sendo excedidas. Enquanto o resto do mundo sofre com a rotina de desavenças e ódio sem sentido, o Brasil vive um oásis de paz e congraçamento de raças e credos que nem os resultados dos jogos, com suas habituais implicações, tem conseguido perturbar. “O que mais eu estou gostando? Sem dúvida nenhuma, dos brasileiros!”, não por acaso sentenciou um dos milhares de visitantes, solicitado por um repórter a dar suas impressões sobre a Copa brasileira.

Diante disso, não faz sentido buscar defeitos e implicar com detalhes que se apequenam e até passam despercebido frente ao saldo altamente positivo do conjunto da obra. E dos inegáveis benefícios que daí devem resultar, a partir da reabilitação da imagem do país aos olhos do mundo. Diante do quê, até o suplício imposto por narradores e comentaristas de araque a que estão condenados os milhões de telespectadores vidrados na televisão, se torna mais suportável. Isso que não é nada agradável ficar à mercê de transmissões recheadas de clichês e abobrinhas proferidas por uma legião de ex-jogadores que em sua maioria, esquecem a abissal distância que há entre falar e fazer.

Como no jogo entre Alemanha e Gana, em que a dupla Casagrande e Junior praticamente responsabilizou o atacante ganês Ayew por uma possível eliminação ao desperdiçar a chance do terceiro gol, que provavelmente “mataria o jogo”, por tentar o chute ao invés de servir dois companheiros que se apresentavam no meio. Ora, crucificar um atacante que corre 30 metros e chega na cara do gol com plenas condições de marcar, só não o fazendo por falta de pernas, sendo que os dois companheiros não estavam tão livres assim, como se viu nas repetições, partindo de leigos, vá lá que seja.

Mas como de leigos ambos não têm nada, mais uma vez a impressão que ficou é de que nem sempre o concurso de ex-atletas, que teoricamente conhecem melhor as minúcias e dificuldades inerentes ao jogo, acrescenta alguma coisa às transmissões. Ainda mais quando se cruza a tênue linha entre o comedimento e a soberba, limite frequentemente ignorado por experts que sabem cada vez mais sobre cada vez menos, como já definiu o pedagogo e filósofo estadunidense Nicholas Butler.

Um pouco de moderação e sobriedade não fazem mal a ninguém, ainda mais quando a exposição é grande.

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Ivan Berger é jornalista