Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A celebração da morte

Cazuza cantou ter visto a cara da morte e que ela estava viva. Amy Winehouse morreu sozinha em sua casa. Pior, talvez tenha vivido sozinha. Não que nunca tenha recebido cuidados de sua família, definitivamente não se trata disso, senão de uma solidão própria de nossa condição e com a qual todos temos de conviver desde a infância, às vezes de maneira mais acentuada na adolescência e depois na vida adulta. Encontrar saídas, subterfúgios, caminhos, seja lá o que for, e como faz parte da trajetória de cada um, pode ser a poesia, a arte, a pintura, a dança, o esporte, a música, enfim, o canto, embora nem sempre as escolhas sejam as melhores ou as mais acertadas.

Paga-se um preço – a maioria das vezes, muito alto – pelas próprias escolhas quando a liberdade de tê-las feito se revela falsa, levando a um caminho sem volta. Nem há culpados quando culpados somos todos e tudo mais.

É fácil celebrar a morte, ainda mais se houver uma boa dose de glamour a colorir o espetáculo com ingredientes de escândalos, drogas, talento – e, de preferência, que tudo seja servido bem quente, que para isso servem os ídolos (imolados).

A mídia, neste episódio, quando não conseguiu ir além da superfície e de uma série de clichês, ficou entre ridícula e grotesca, como no Fantástico (de 24/07), quando se pediu a fãs em algum shopping center para homenagear a cantora, imitando-a, com direito a maquiagem e peruca. Ana Maria Braga apareceu, na segunda-feira (25/7), em seu programa vestida a caráter, num arremedo cômico, apelativo, aberrante, para dizer o mínimo.

Um pouco de silêncio

E todos vão tirando mais uma “casquinha” em busca de ibope ou seja lá o que for a movê-los – o Pânico, além de reprisar um quadro antigo da personagem a desferir voadoras e golpes, enviou dois “humoristas” (se assim se pode nomeá-los) a Londres para se infiltrarem no funeral da cantora, e até entrevista à TV alemã chegaram a dar.

Parece que tudo vira, de um ou outro modo, entretenimento, e não convém tocar em camadas mais profundas (senão para uma correção estética) de qualquer que seja a questão. Se há solidão e dor na experiência humana – aliás, tudo é dor (e sua superação), segundo um ensinamento budista –, também há muita diversão vazia e barulho (na lógica ocidental).

Decerto que ninguém precisa ser triste ou usar cilício; tampouco afundar-se nas drogas – sempre haverá uma dose exata, seja de álcool ou calma, seja do próprio cinismo. A indústria não para, nem a vida. O tempo devora tudo e parece que só os caretas é que resistem, o que não deixa de ser uma forma de glamourizar esse caótico cenário.

Pobre Amy Winehouse – nem agora talvez estejamos vendo-a de verdade, mais desnuda, mais humana e ainda mais frágil. Tampouco conseguimos encarar nossos próprios medos, seja de lutar pelo que se sonha, seja do fracasso, da dor, da solidão, do cansaço, de nos olharmos e não nos reconhecermos.

Se não há nada a dizer além de bobagens midiáticas, ou não se saiba dedicar a Amy nem mesmo uma prece, façam ao menos um pouco de silêncio.

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[Afonso Caramano é funcionário público, Jaú, SP]