Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Miriam Leitão e os celulares chineses

No dia 10 de janeiro, ouvi na CBN comentário da jornalista Miriam Leitão. Como de hábito, tratava de economia, e também, como de hábito, desancava a economia brasileira, sem fazer quaisquer ressalvas. Para a comentarista tanto fazia o Brasil estar no olho do furacão em que se transmutou a economia internacional como estar avançando nisso que os mais otimistas chamariam de “mar de prosperidade”, com saldo positivo na balança comercial, aumento real do salário mínimo e apostando no mercado interno. Para Miriam Leitão dava tudo no mesmo e o governo deveria mudar radicalmente as diretrizes de sua política econômica, começar a se preocupar mais em poupar e dar por encerrados os dias de cigarra. O Brasil, pareceu-me ser esta a sua visão, deveria se recolher à sua condição natural de formiga.

É de chamar atenção o grau de pessimismo demonstrado nas análises econômicas de grande parte de nossos festejados experts da área, que de economia pouco têm e onde proliferam interesses meramente políticos. Reconheço que nada pode ser mais patético que lutar contra a realidade, nadar contra a corrente, buscar incessantemente brechas por onde possa se erguer uma crítica minimamente razoável e que não seja “meros devaneios tolos a nos torturar”, como dizia Belchior em sua canção dos anos 1970.

Pois bem, o comentário de Miriam Leitão começava com “o governo está pensando em tentar conter a importação de celulares da China”. Paro aqui. Os leitores já observaram como tem sido habitual Miriam Leitão iniciar sua fala com este habitual “o governo está pensando”? Ora, se já é-me difícil estar atento aos meus próprios pensamentos, como a veterana jornalista trata assim com tanta naturalidade sua percepção sobre o que está pensando o governo? Parece óbvio até ao reino vegetal (sim, o mineral é geralmente auscultado pelo bom Mino Carta) que entrar no pensamento do governo é algo muito simples, ainda mais com a estrutura simplória que desfruta o governo em nosso país. Mas o que menos importa é saber como “conhecer de antemão o pensamento do governo”; o objetivo de comentários que assim começam é ir logo desconstruindo tão torpe pensamento, porque o importante mesmo é, antes de se combater os fatos, combater o que se considera excessivamente danoso à Nação. Logo a seguir, Miriam Leitão informa que, “em 2009, os celulares importados representavam 9% do total de aparelhos vendidos; em 2011, podem ter chegado a 35%” e que “a participação da China cresceu: no começo do ano passado, 54% dos celulares eram de lá; no fim de 2011, 84%.” Até aqui, temos o início com o auxílio luxuoso de uma bola de cristal, a apresentação de números quase sempre não confiáveis – já que não conhecemos as fontes – e que nos conduzem à conclusão de que a China está invadindo o país com celulares.

Afirmações contundentes

Feita esta introdução, a comentarista já se sentiu inteiramente em sua área de conforto: “Quando o governo nota que aumentou a importação de determinado produto da China, pensa logo em criar uma barreira, mas essa não é a solução para os problemas do comércio internacional. Tenho dito aqui que não é dessa forma que as adversidades são enfrentadas.” Observa-se logo a sapiência arrogante, própria dos iluminados e tão bem ilustrada nas frases “mas essa não é a solução para os problemas do comércio internacional” e diligentemente repisada com esta outra: “tenho dito aqui que não é dessa forma que as adversidades são enfrentadas”. Desde quando uma comentarista, muito alheia acerca de todas as informações, fatos e peculiaridades das delicadas relações políticas e econômicas que envolvem dois países, pode afirmar com tanta contundência que “esta não é a solução” e que “não é desta forma” que os assuntos devem ser tratados?

A conclusão, que certamente é um primor de desinformação mesclada ao senso comum, faz jus às premissas elencadas: “Do que a gente importa é preciso ver se há algum tipo de competição desleal. Se há, a questão deve ser tratada na OMC, que tem mecanismo para reprimir ou criar barreiras a esse tipo de importação. Agora, se a China é mais eficiente na produção de celulares, o Brasil tem que ver o que fazer para ficar mais ainda (…).” Em que galáxia habita Miriam Leitão? Desconhecer que possa existir competição desleal é tolice rematada. Qualquer tijolo da Grande Muralha percebe que no Império do Dragão o que não falta é o uso de trabalho escravo, de trabalho infantil, e da ausência quase completa de observância ao primado dos Direitos Humanos. Ora, e se não existem salvaguardas legais ao trabalho humano, é óbvio, patente e legítimo supor que os preços chineses serão sempre muito mais atrativos que os preços brasileiros, hondurenhos, franceses ou noruegueses. Afinal, na formação de preço dos produtos, os custos de mão de obra aproximam-se do zero. O custo mesmo é o da matéria prima, com valor agregado ou não. Feitas essas breves e rasas considerações, soa absolutamente sem nexo a afirmação final: “Agora, se a China é mais eficiente na produção de celulares, o Brasil tem que ver o que fazer para ficar mais ainda.”

Pois bem, se o governo seguir o conselho da sapiente Miriam Leitão, não tardará para que se revogue de um só golpe toda a nossa Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), seja permitida a jornada diária de 12 horas, com uma hora de descanso, e também permitido o emprego abusivo de crianças e idosos em troca de ração alimentar. Uma visita aos sítios da Anistia Internacional, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da própria Organização Mundial do Comércio (OMC) poderia ser de extrema utilidade, pois desvelaria avalanchas de denúncias de dezenas de países contra as práticas comerciais da China e, de quebra, ainda poderia responder à altura a seu singelo questionamento sobre o porquê de a China ser mais eficiente na produção de celulares que o Brasil. Simples assim.

Ainda bem que o pensamento do governo é interceptado por especialistas em economia como Miriam Leitão. Pois, do contrário, caso o seu pensamento fosse considerado previamente pelo governo, estaríamos irremediavelmente perdidos.

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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundoseu twitter]