Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O fator midiático

A juíza Rosana Navega Chagas conta em artigo (Folha de S. Paulo, 16/2) como a cobertura de televisão transformou briga de marido e mulher, no Grande Rio, em sequestro de ônibus que quase terminou em tragédia.

Era uma discussão num ponto de ônibus, quem chamou a polícia pensou que fosse um assalto, o homem ficou apavorado quando viu o fuzil de um policial, puxou a mulher para dentro de um veículo que havia parado, a cobertura midiática em tempo real instigou a polícia, e o drama se prolongou.

Um promotor evitou o pior − depois de muito insistir, porque a polícia dizia que ele não saberia lidar com o agressor, André Luiz Ribeiro da Silva. Após ser convencido pelo promotor, André Luiz entregou a arma. “Foi quando o Bope invadiu o [ônibus] 499. Só a invasão foi filmada, ficando o mérito para o Bope, não para o promotor!”, escreveu a juíza Chagas.

O show da polícia

O texto é um complemento de reportagem sobre o julgamento de Lindemberg Alves, que em outubro de 2008 matou a ex-namorada Eloá Cristina Pimentel, depois de fazê-la refém e ficar sob cerco policial durante 100 horas. Aqui, a juíza pergunta “por que não chamaram um pastor, padre ou líder comunitário”. E dá seu ponto de vista:

“A polícia não percebe que numa situação extrema o ‘sequestrador’ não negociará com um policial – mesmo formado nas melhores escolas dos EUA – por temer por sua vida, mas poderá negociar com um religioso?”

Em seguida, Chagas diz que não defende Lindemberg, mas afirma que “houve falhas na conduta policial”:

“Deixaram passar muito tempo, estressaram-no e deveriam ter a humildade de aceitar a ajuda de um religioso ou alguém próximo a Lindemberg nas negociações.

“Criminosos ou passionais não negociam com policiais. E policiais não precisam dar show em operações filmadas pela mídia. Não sei se foi Lindemberg quem matou Eloá, mas, se foi, acredito na parcela de culpa da polícia. E fica aqui um apelo ao legislativo: que seja impedida, por lei federal, a filmagem dos ‘crimes em tempo real’. Afinal, palco é para artistas.”

O caminho proposto pela juíza não é o mais adequado. Não há como proibir a presença de jornalistas, devidamente identificados, em local público. Nem haveria benefício em fazê-lo.

Mas há como se contrapor ao assanhamento da mídia, como fez Keila Jimenez na mesma edição da Folha:

“Acostumados a tomar na veia o soro da repercussão de casos como esse, Datena, Sônia Abrão e seus genéricos passaram os últimos três dias se esquivando da defesa do rapaz, que pretende colocar em julgamento o papel da mídia no episódio.”

Se a chefia mandasse…

O assassinato do cinegrafista da TV Bandeirantes Gelson Domingos da Silva, em 6 de novembro de 2011, durante cobertura de operação policial na favela carioca de Antares (ver “A guerra da audiência”), havia suscitado o mesmo debate.

Mas jornalistas veteranos disseram na ocasião que a reportagem nunca ultrapassa o ponto indicado pelos policiais, desde que digam claramente que deve ser mantida distância. O que ocorre é que as polícias brasileiras trabalham com um olho no crime e outro na câmera, e com muita frequência a segunda pesa mais na balança de suas decisões.

O que talvez possa funcionar é uma determinação da Secretaria de Segurança Pública, repassada pelo comandante da PM e pelo chefe da Polícia Civil, para que policiais não façam mais reality show em programas de televisão, sejam os claramente sensacionalistas, sejam os que se pretendem puramente jornalísticos.

Mas, como já se disse aqui, ninguém manda na polícia. Nem para deixar de servir à imprensa, nem para deixar de ameaçá-la. Na origem dos dois extremos está o fato de que a mídia depende da polícia muito mais do que de sua própria apuração jornalística, e a polícia explora isso sem o menor constrangimento (ver “Ninguém manda na polícia”).

Em paralelo, seria necessária uma orientação dos chefes de redações para que seus jornalistas se preocupem mais com o que for percebido como interesse da sociedade do que com “furos” e “matérias exclusivas”. Infelizmente, isso é tão improvável quanto, como diria a juíza Eliana Calmon, o sargento Garcia prender o Zorro.

Mas não é impossível, e depende em certa medida da visão que, sobre o tema, predomine na opinião pública.

Código Penal pode avaliar mídia

Outro caminho é discutido no Senado por integrantes da comissão que elabora projeto de novo Código Penal. Segundo a Folha de S. Paulo (14/2), se tornaria possível reduzir em um sexto a pena de réus condenados em casos de cobertura “abusiva e degradante” feita pela imprensa. A redação dada até aqui é “violação dos direitos do nome e da imagem pelo abuso degradante dos meios de comunicação”.

Esse caminho pode gerar dois efeitos.

Primeiro, a possibilidade que o condenado terá, após a mitigação da sentença nesses termos, de processar o(s) meio(s) de comunicação cuja cobertura tiver sido considerada pelo magistrado um “abuso degradante”. Tratar-se-á de uma manifestação formal da Justiça nesse sentido.

Segundo, um resultado prático em contradição completa com a finalidade aparente do discurso de “prende e arrebenta” dos programas policiais sensacionalistas. Quanto mais gritarem, mais poderão suavizar a pena de hediondos criminosos.