Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Da casa do caraclum a pau-brasileiro

No dia 22 de abril de 1500, o aviso de “Terra à vista” foi dado pelo marinheiro que estava de castigo na casa do caraclum. Sim, prezados leitores, antes de designar o órgão sexual masculino, o latim caraclum tinha o significado de estaca, palanque, pau firme. E dava nome ao mastro mais alto das naus. Não era palavrão! No alto do caraclum, palavra vinda do grego chárax, esteio e apoio para as vinhas, acima da cesta da gávea, ficava a casa do caraclum, um lugar de punição e sofrimento, para onde era enviado o marinheiro desobediente. Lá ele estava submetido ao frio, ao calor, à chuva, ao sol, passava sede e fome.

Seu dever era avisar o comandante de tempestades no horizonte, de piratas a bombordo ou a estibordo, pela proa ou pela popa, pois dali tinha visão privilegiada, uma vez que estava no mais alto de todos, até mesmo do comandante Pedro Álvares Cabral, à frente daquela frota ou esquadra de 13 naus, que vinha para o que desse e viesse, para o comércio ou para a guerra, o que encontrassem primeiro.

Provavelmente o Brasil já tinha sido descoberto há alguns anos por outros navegadores, não apenas portugueses. Tratava-se então de achá-lo e tomar posse da nova terra.

Terra de Vera Cruz

Mas deixemos que o escrivão da frota ou esquadra, Pero Vaz de Caminha, que não usa uma única vez a palavra caravela em toda a sua famosa Carta, nos dê o gosto de seu estilo ao descrever e narrar ao rei Dom Manuel I, o Venturoso, o grande feito obrado por aqueles 1.500 homens.

“Senhor:

“Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que – para o bem contar e falar – o saiba pior que todos fazer.”

“E passa a descartar o que não vai escrever: “Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado.”

“Mas do que pode e tem a dizer não demora a esclarecer ao soberano: “Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo: A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. (…) E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.”

O primeiro nome que o minucioso escrivão registra para o Brasil é Terra de Vera Cruz. Ao concluir a Carta e despedir-se do rei, o nome já é outro: “Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.”

Escolha do gentílico

O dia do registro do nascimento do Brasil não era ainda o dia do trabalho, do latim tripalium, instrumento de castigo composto de três paus, aos quais era afixado o condenado, quando não empalado num deles! Exagero semântico? Não porque, cessada a extração do pau-brasil, passou-se a extrair ouro e o trabalho era sofrimento inaudito para escravos vindos da África, muitos dos quais eram castrados sem qualquer anestesia, como se fazia com o gado, para que ficassem com as pernas grossas, não crescessem muito e assim as minas pudessem ter teto mais baixo. Quem duvida, vá aos museus e igrejas de Ouro Preto (MG), que os instrumentos de castigo e castração estão ali guardados ad perpetuam rei memoriam desde o Século do Ouro.

Aqueles audazes navegantes deixaram o Brasil, seguiram para a África, perderam sete das treze naus, consagrando o treze como número de azar, e voltaram a Portugal sem saber o tamanho do que tinham descoberto ou achado!

E, por força da extração daquela madeira de cor brasina, o pau-brasil, objeto de intenso comércio no século 16, por fornecer um corante vermelho muito usado para tingir tecidos e fabricar tintas, logo o nome não era mais Ilha de Vera Cruz nem Terra de Vera Cruz, mas simplesmente Brazil, inicialmente com “z” e depois com “s”, como veio a consolidar-se.

O habitante deveria ser braziliense, com “z”, ou brasiliense, “s” com som de “z”, por estar entre duas vogais, mas, por designar o ofício de quem derrubava as árvores para comercializá-las chamou-se brasileiro, à semelhança de marceneiro, ferreiro etc. Por pouco, o brasileiro não é identificado hoje nos documentos como pau-brasileiro.

De grão em grão

Seria demais! Da casa do caraclum a pau-brasileiro! Mudamos muito? Nem tanto! Outras nações para cá acorrem com o fim de levar, não pau-brasil, mas ferro-brasil, aço-brasil, pedra-brasil, cereal-brasil, diversidade-brasil etc, para dar empregos em outros lados do mundo e conjugar o velho verbo mais praticado nos primeiros séculos, roubar!

Embora nossa classe política, com tanta corrupção, insista em tratar-nos com se vivêssemos ainda na casa do caraclum, o certo é que de grão em grão, não a galinha, mas o povo enche o papo. E quinhentos anos depois vive muito melhor do que vivia naqueles primeiros séculos.

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[Deonísio da Silva é doutor em Letras pela USP e autor de 34 livros. O mais recente é o romance Lotte & Zweig. É vice-reitor da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro]