Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Hino nacional teve 15 pareceres contrários

O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony lembrou numa de suas crônicas o que aconteceu num programa de calouros que Ary Barroso fazia no rádio.




‘Um cidadão se apresentou: `O que vai cantar?´, perguntou Ary. O sujeito respondeu: `Vou cantar o Virandum.´ Ary estranhou: `O que é isso? Mostre como é para o pianista poder acompanhar.´ O calouro cantou baixinho para o pianista e o Ary: `Virandum do Ipiranga, salve´.’


Os versos do Hino Nacional estão completando um século neste outubro. Seu autor é Joaquim Osório Duque-Estrada, que sucedeu a Sílvio Romero na Academia Brasileira de Letras.


A música foi composta em 1831 pelo maestro Francisco Manuel da Silva. Foi o marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente da República, quem decidiu, depois de concurso para escolha da música do Hino Nacional, que seria mantida a composição anterior, já tocada nos tempos do Império.


Os hinos compõem um gênero muito peculiar. Ainda antes de existirem os Estados, já existiam os hinos, no mais das vezes canções de guerra, exaltação de deuses protetores, invocação de forças telúricas, elogio da paisagem, da fauna, da flora e de destacadas personalidades a quem a comunidade que cantava aqueles hinos muito devia.


‘Três simples senões’


Numa outra versão, a primeira estrofe musical apresentava letra de Américo Moura, que tinha esses versos, às vezes cantados como introdução ao Hino Nacional:




‘Espera o Brasil/ Que todos cumprais/ Com o vosso dever./ Eia, avante, brasileiros,/ Sempre avante!/ Gravai com o buril/ Nos pátrios anais/ o vosso poder./ Eia, avante, brasileiros,/ Sempre avante!/ Servi o Brasil/ Sem esmorecer,/ Com ânimo audaz/Cumpri o dever,/ Na guerra e na paz,/ À sombra da lei,/ À brisa gentil/ O lábaro erguei/ Do belo Brasil./ Eia, sus, oh sus!’


Esses versos são constantemente lembrados na internet e uma das mensagens vem acompanhada do depoimento de uma ex-combatente da FEB. O autor dessas estrofes, afinal descartadas na versão oficial, era natural de Pindamonhangaba (SP) e foi presidente da província do Rio entre 1879 e 1880, cargo equivalente ao do governador atual.


Ainda assim, nós cantamos hoje um Hino Nacional levemente diferente daquele que Joaquim Osório Duque-Estrada compôs em 1909. Ele fez várias alterações em 1916, sete anos depois de ter composto os versos para combinarem direitinho com a música.


Como explica Maria Aparecida Vitta Maya em O Guarda-Noturno da Literatura Brasileira: vida e obra de Joaquim Osório Duque-Estrada (G. Ermakoff Casa Editorial, 2009, 320 p.), houve uma guerra de pareceres. Quinze, no total. E o autor respondeu assim a seus críticos: ‘Dos quinze pareceres acima transcritos, dois (o de Oscar Guanabarino e Iberê da Cunha) reduzem a três simples senões, de facílima correção, os oito erros apontados pelos srs. E. Borgongino e Pedro de Melo.’


Nenhum parecerista sabia compor um hino


Mas, coisa curiosa, o autor resolveu atender a alguns daqueles pareceres e piorou a redação. Ele fez onze modificações, todas para pior. Escrevera: ‘Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ Da Independência o brado retumbante’. E mudou o segundo verso para ‘de um povo heroico o brado retumbante’, produzindo o terrível cacófato ‘heroi cobrado’. Mudou também: ‘Fulguras, ó Brasil, joia da América’, para ‘florão da América’; ‘o pavilhão que ostentas estrelado’ para ‘lábaro que ostentas estrelado’.


Toda a celeuma ocorria em 1916. E o Brasil continuava sem letra oficial para o Hino Nacional. Em 1917, o assunto voltou à Câmara num projeto que propunha aprovação das letras do Hino Nacional e do Hino à Bandeira, este de autoria de Olavo Bilac, com música do maestro Francisco Braga.


Em 1921, às vésperas do centenário da Independência e passados 33 anos da República, o Brasil ainda não tinha um hino oficial ‘por mero capricho de alguns descontentes’, como explicou, em discurso exaltado e furioso, o escritor Coelho Neto. Destaquemos, por pertinente, que nenhum dos pareceristas sabia compor um hino. Todos eles sabiam apenas apontar defeitos naquele que já existia!


‘Letra não pode ser entendida’


E então, a 26 de agosto de 1922, o copyright da letra do Hino Nacional foi cedido por cinco contos de réis, nos termos do Decreto 15.636. E, por fim, no dia 6 de setembro de 1922, com o Decreto 15.671, o presidente Epitácio Pessoa dava fim à polêmica, consagrando a composição de Joaquim Osório Duque-Estrada como oficial.


A polêmica terminou? Mas o que é que termina no Brasil? A partir de 1932, voltaram as discussões. E em 3 de maio de 1970, o senador paraense Catete Pinheiro propôs que o verso ‘deitado eternamente em berço esplêndido’ fosse substituído por ‘atento aos desafios que enfrenta e vence’. Segundo o senador, o verso era ofensivo ao brasileiro, considerando-o ‘indolente e dorminhoco’.


O deputado Amaral de Souza, depois governador do Rio Grande do Sul, foi outro que, em 1972, propôs mudar o mesmo verso para ‘altivo eternamente em gesto esplêndido’. Foi rejeitado. A Federação das Indústrias de Minas Gerais reagiu com tal energia que a notícia foi manchete no famoso jornal Correio da Manhã, em 10/6/1970.


Em 1993, um cidadão de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, alegou que o Hino Nacional tinha que mudar porque a letra ‘nem pode ser entendida pelos moradores das áreas rurais ou pela alma carioca, muito menos pelos 15 milhões de brasileiros iletrados’.


Os versos de Camões


O cartunista e escritor Ziraldo Alves Pinto escreveu no Estado de Minas (19/12/2003) que ficou emocionado durante solenidade festiva em Belo Horizonte: ‘De pé, na primeira fila à minha frente, estavam os meninos da creche e, entre eles, com a mãozinha no peito, o menino moreno que, sem perceber que o observava, repetia os versos do Hino Nacional com a mais absoluta segurança’.


Em resumo, para aqueles pareceristas e para todos os que não aceitam a letra do Hino Nacional, talvez o que falte seja entender as metáforas e outras figuras de linguagem que Joaquim Osório Duque-Estrada criou para adaptar sua letra à música do Hino Nacional, já então muito conhecida e executada em cerimônias.


Joaquim Osório Duque-Estrada poderia ter respondido aos pareceristas com os versos de Camões, ditos e escritos ainda no século 16:




‘Nem me falta na vida honesto estudo/ Com larga experiência misturado/ Coisas que juntas se acham raramente.’


Mas, não. Ele cedeu e piorou a sua composição.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é coordenador de Letras e de teleaulas de Língua Portuguesa; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e A Língua Nossa de Cada Dia (ambos da Editora Novo Século)