Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Indústria cultural, cinema e emancipação

Uma das coisas mais fascinantes na sociedade contemporânea é a presença, nela, das suas ‘insuperáveis’ contradições. Com o tempo livre totalmente administrado, durante o qual não seria possível nada além do que o consumo desenfreado dos produtos da chamada indústria cultural – desde as novelas para televisão, aos filmes, à música, às revistas, aos jornais etc. –, seria possível encontrar uma brecha para o pensamento livre e emancipador?

A mais ousada produção do ano de 2009, que concorre ao prêmio hollywoodiano do cinema de 2010, o filme de denominação hindu Avatar, talvez queira transformar todos seus consumidores em meros corpos receptáculos – como seu próprio nome sugere. O filme indica a direção tomada pelas produções cinematográficas e pela indústria tecnológica: seus produtos visam cada vez mais a privar o consumidor de participar de forma ativa das ‘atividades’ que consome em seu tempo livre. Os televisores futuristas – e o futuro não está mais tão longe como antigamente! – prometem transmitir imagens em três dimensões, dando ao espectador a impressão de que ele está dentro da cena, vivendo, ele também, a narrativa cinematográfica. O primeiro órgão a ser tomado de assalto pelo cinema foi os olhos, logo depois os ouvidos (que já haviam sido domesticados pelo rádio). Contudo, há quem prometa agora que se tornará possível sentir sensações olfativas referentes às cenas e lugares que se passa na ‘telinha’. Não duvido.

A verdade nas narrativas

Ao ser completamente violentado com todas essas informações ao mesmo tempo, engana-se aquele que considera estar participando ativamente naquele momento de sua ‘vida’. Lembre-se: trata-se de impressões, e não de experiências reais. A alegoria de Günther Anders sobre ‘o homem no banho de sol’ não poderia ser mais perspicaz ainda hoje: mesmo estando com todos os sentidos ocupados, não se pode chamar propriamente de atividade o que ‘faz’. O sujeito simplesmente se deixa adequar: sua pele recebe os raios do sol, seus ouvidos recebem a música que pulsa (atualmente) do MP3-player, sua língua, o tutti-frutti do chiclete, seu nariz, o aroma de canela do óleo bronzeador, seus olhos, as figuras da revista da moda. Da mesma maneira, o cinema indica que fará cada vez mais uso de tecnologias para proporcionar a mesma catatonia aos seus consumidores. Eis a pergunta: o que fascinou os espectadores de Avatar: a tecnologia ‘3D’ ou a antiga história de que o homem é mau, destruiu seu planeta e destruirá também outros como desbravador insaciável do universo, mas que o bem sempre vencerá? Digo: ambos. O conteúdo da narrativa é tão vazio quanto sua forma emudecedora. Temas da moda, como a necessidade da preservação ambiental, são misturados com filosofias orientais, indicando que a natureza é a grande mãe e que devemos nos curvar a ela: uma panacéia.

Mas, não é de hoje que se sabe que para sobreviver o homem sempre teve que aprender a dominar a natureza. A questão é que o dominar se misturou em demasia com o destruir e com o reprimir: novamente o que o filme faz com seus espectadores. Eis, outra vez, a dialética do esclarecimento! Todavia, não se trata de um tom pessimista em demasia. Ao lado de produções milionárias como essa, é possível encontrar aquelas de diretores que dizem: ‘Espero desencadear um processo de reflexão. Um filme só se conclui de fato na cabeça deles.’ Não querendo entregar tudo ‘de bandeja’ ao espectador, Michael Haneke, diretor de A fita branca – ganhador da Palma de Ouro em Cannes em 2009 –, parece ter consciência do caráter mentiroso dos filmes e é exatamente porque assume isso que se torna possível, a ele, dizer a verdade em suas narrativas: verdade que só é possível de ser alcançada se o espectador se faz ativo (o que talvez contradiga o próprio sentido da palavra ‘espectador’).

O caminho da barbárie

O filme de Haneke faz lembrar o desabafo de um filósofo alemão nascido em 1903, Theodor W. Adorno, que disse: ‘[…] Eu deveria deduzir o fascismo das recordações da minha infância. Como um conquistador nas províncias mais longínquas, ele tinha para ali enviado os seus emissários, muito antes de aparecer: os meus colegas de escola.’ Forma e conteúdo se misturam aqui mais uma vez: o filme que traz uma narrativa passada no início do século 20 dá-se em preto e branco, tal como a História está presa no nosso imaginário, e mostra como é possível desumanizar através de uma educação com princípios rígidos, formando pessoas que apoiariam o regime nazista na Alemanha. Seu conteúdo é forte porque fala daquilo que é o mais íntimo a todos nós. Mas, indicando que a História está tão distante, ele seria capaz de despertar uma reflexão sobre o agora? Otimista, o diretor pressupõe a existência de sujeitos que ainda têm possibilidade de se emancipar, como o Barão de Münchhausen saindo do pântano ao se puxar pelos próprios cabelos.

Mas não sejamos ingênuos. O filme ‘cult’ está na moda ao se somar aos inúmeros feitos sobre a temática do nazismo, da refilmagem de A onda – com direito a final trágico – aos inglórios Bastardos – eles mesmos com espírito fascista – não há nada mais em voga do que mostrar o quanto os alemães foram maus. Que fique claro: os alemães, e não nós! Mesmo porque ‘os maus sempre perdem no final’, não é? Mas, o quanto o preconceito não continua enraizado no mais fundo de nossa alma? O prazer que se sente ao ver Hitler metralhado e queimado – na filmagem de Tarantino – por um ‘bastardo’, com o qual nos identificamos (no cinema, muitos espectadores riram durante a cena), mostra que o nosso ‘caráter’ não é tão glorioso quanto se pressupõe: eis a contradição que a indústria cultural nos permite viver. Talvez isso mostre que ainda há sangue pulsando nas veias e que nem mesmo nossa própria natureza é passível de controle sem mais conseqüências. No entanto, reconhecer essa contradição de modo sincero, e refletir sobre ela, é a abertura que nos resta e que quiçá nos desvie do atual caminho de barbárie.

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Psicóloga, mestre em Educação e doutoranda em Filosofia pela UFSCar, Piracicaba, SP