Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Manobra primária para encobrir responsabilidades

Primeiro, foi o episódio da ‘ditabranda’; agora, é a história da ficha falsa da ministra Dilma Rousseff, que acaba de ganhar mais um capítulo: não será exagero dizer que a atitude arrogante e provocativa da Folha de S.Paulo já configura um caso clínico, do qual só vale a pena tratar porque o jornal, além de ter o seu lugar na história da imprensa brasileira, ainda se inclui entre as publicações de referência no país.


Trata-se de um jornal que se orgulha de seus leitores esclarecidos. Sua recente campanha publicitária é um bom exemplo disso: assinaturas variadas que vão se espalhando em letras luminosas pelos prédios e monumentos de São Paulo, até abranger toda a cidade. Assinaturas elegantes, de caligrafia caprichada, ágil, decidida: não os garranchos disformes e hesitantes dos semi-alfabetizados. Assinaturas de gente culta, qualificada, ilustrada, que quer ‘a verdade acima de tudo’.


Gente tão sofisticada assim não merecia ser ofendida com uma manobra discursiva tão primária e óbvia quanto a da chamada de primeira página da edição de domingo (28/6), em que o jornal procura, a um só tempo, inverter responsabilidades e desqualificar a comprovação da fraude que ajudou a perpetrar, ao publicar uma ficha falsa da ministra Dilma Rousseff, presa na época da ditadura.


Pequenas verdades em nome da mentira


Em fins dos anos 1980, uma notável campanha publicitária tornou-se referencial para a Folha: um locutor em off enaltecia as várias realizações de um estadista enquanto a imagem reticulada ia se compondo, até formar o rosto de Hitler. E a conclusão: ‘É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade’.


O jornal agora pratica o que antes criticava. A chamada da edição dominical afirma: ‘Laudos pagos por Dilma dizem que ficha é fabricada’. Diz a verdade. Uma verdade banal, que, de tão elementar, é irrelevante: de fato, os laudos foram pagos. Nem poderia ser de outra forma: imagine-se o que se diria se peritos de duas universidades públicas tivessem trabalhado voluntariamente para uma ministra… Porém, o que essa pequena verdade pretende afirmar é: os laudos são suspeitos, porque ‘pagos’ (ou ‘contratados’) por uma autoridade interessada num determinado resultado. Ou seja: insinua-se que a ministra poderia estar manipulando a perícia, quando a manipulação foi do jornal, ao publicar um documento falso.


A matéria, na página interna, também só diz verdades. Porém as relaciona de acordo com o interesse do jornal, de modo que o essencial – o fato de que a Folha asseverou, na chamada de capa do dia 5 de abril, que a ficha ali reproduzida era do Dops – aparece escondido, quase envergonhadamente, no meio do texto [ver íntegra abaixo]. Além disso, sugere que os laudos não deveriam ser levados em consideração, porque não utilizam a ilustração publicada pelo jornal – que, como argumentou um dos peritos, não se prestaria à análise –, mas sim uma imagem entre várias semelhantes capturadas na internet. Com uma agravante: a imagem em que se baseou a perícia foi retirada do blog do jornalista Luiz Carlos Azenha, notório crítico da Folha.


Uma agressão à inteligência


Para concluir, o jornal reafirma que continua tentando checar a autenticidade da ficha. Ou seja, continua a abusar da inteligência do leitor – esse leitor sempre tão esclarecido – e a tentar justificar o que qualquer estudante de jornalismo – dessas escolas que, depois da decisão do STF sobre o diploma, já não são tão importantes assim – está obrigado a saber: que todo jornal precisa confirmar a origem das informações antes de publicá-las. E que não pode, simplesmente, reclamar inocência por ter publicado um ‘documento’ que, alegadamente, lhe chegou por e-mail, como se fosse um spam vadio.


O jornal sabe que sua posição é insustentável. Sabe que fez o que não podia fazer. Sabe que a única saída seria identificar a fonte que lhe forneceu a tal ficha e expor o processo que resultou em toda essa polêmica. Ou, mais ainda, como recomendou o ombudsman na última vez em que tratou do caso, em sua coluna de 3 de maio: constituir comissão independente para apuração dessa história, à semelhança do que fez a CBS, quando divulgou informação falsa sobre George W. Bush, na reta final das eleições americanas de 2004.


Enquanto não fizer isso, a Folha estará autorizando todo tipo de especulação sobre os motivos que a levaram a fazer o inaceitável: inclusive, que é partícipe de uma fraude com intenções muito precisas. Eticamente, portanto, só teria uma saída. A não ser que deseje forçar uma ação judicial, para então dizer-se vítima de perseguição política às vésperas da campanha eleitoral.


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Dilma contrata laudos que negam autenticidade de ficha


Folha de S.Paulo # 28/6/2009


Da Reportagem Local


A ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, encaminhou à Folha dois laudos técnicos, por ela custeados, que apontaram ‘manipulações tipográficas’ e ‘fabricação digital’ em uma ficha reproduzida pela Folha na edição do último dia 5 de abril.


A ficha contém dados e foto de Dilma e lista ações armadas feitas por organizações de esquerda nas quais a ministra militou nos anos 60. Dilma nega ter participado dessas ações. A imagem foi publicada pela Folha com a seguinte legenda: ‘Ficha de Dilma após ser presa com crimes atribuídos a ela, mas que ela não cometeu’.


O laudo produzido pelos professores do Instituto de Computação da Unicamp (Universidade de Campinas) Siome Klein Goldenstein e Anderson Rocha concluiu: ‘O objeto deste laudo foi digitalmente fabricado, assim como as demais imagens aqui consideradas. A foto foi recortada e colada de uma outra fonte, o texto foi posteriormente adicionado digitalmente e é improvável que qualquer objeto tenha sido escaneado no Arquivo Público de São Paulo antes das manipulações digitais’.


O laudo produzido pelo perito Antonio Nuno de Castro Santa Rosa da Finatec (Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos), ligada à UnB (Universidade de Brasília), chega às mesmas conclusões.


A ministra anexou o laudo da Unicamp em carta ao ombudsman da Folha. ‘Diante da prova técnica da falsidade do documento, solicito providências no sentido de que seja prestada informação clara e precisa acerca da ‘ficha’ fraudulenta, nas mesmas condições editoriais de publicação da matéria por meio da qual ela foi amplamente divulgada, em 5 de abril de 2009′, escreveu Dilma.


Em reportagem publicada no dia 25 de abril, intitulada ‘Autenticidade de ficha de Dilma não é provada’, a Folha reconheceu ter cometido dois erros na reportagem original. O primeiro foi afirmar, na Primeira Página, que a origem da ficha era ‘o arquivo [do] Dops’. Na verdade, o jornal recebera a imagem por e-mail. O segundo foi tratar como verdadeira uma ficha cuja autenticidade não podia ser assegurada, bem como não podia ser descartada.


O jornal também publicou um Erramos com os mesmos esclarecimentos. A ministra se disse insatisfeita, questionou a nova reportagem e decidiu contratar um parecer técnico.


Para a análise, os professores descartaram a imagem da ficha reproduzida pela Folha em sua edição impressa. Captaram na internet cinco imagens ‘com conteúdo similar ao utilizado pelo jornal Folha de S.Paulo’. Dentre elas, escolheram como ‘objeto do laudo’ a imagem divulgada no blog do jornalista Luiz Carlos Azenha, que reproduz artigos que criticam o jornal e questionam a autenticidade da ficha.


Para os peritos, a imagem do blog era a que tinha ‘a maior riqueza de detalhes’. Goldenstein disse à Folha que ‘todas as imagens são de uma mesma família’ e que a qualidade da imagem publicada pelo jornal não é boa o suficiente para ‘análise nenhuma’.


Os professores compararam a imagem com documentos reais que supostamente teriam alguma semelhança (papel, caracteres) com a ficha questionada. Trata-se de cópias de fichas de presos pela ditadura, hoje abrigadas no Arquivo Público paulista. Escolheram as produzidas entre 1967 e 1969.


Contudo, no Erramos e na reportagem publicados no final de abril, a Folha havia explicado que a origem da ficha não era o Arquivo Público. A imagem não é datada -relaciona eventos ocorridos entre 1967 e 1969, mas pode ter sido produzida em data posterior.


Para concluir que a fotografia foi ‘recortada e colada’, os professores compararam a foto de Dilma com fotos que encontraram no mesmo arquivo. A ficha questionada não informa que a foto de Dilma foi obtida naquele arquivo.


Sobre a impressão digital contida na ficha, os peritos apontaram não ser possível nenhuma conclusão, devido à baixa qualidade da imagem.


Crimes negados


Ouvido pela Folha na última quinta-feira, Goldenstein disse que não leu o blog do jornalista em que captou a imagem analisada e tampouco a reportagem original da Folha. ‘Não estou criticando o que a Folha fez. Vou ser bem sincero, eu nem li a reportagem original da Folha. Não cabe a mim julgar absolutamente nada. Meu papel é analisar essas imagens digitais que estão circulando na internet. O que a ministra me pediu: ‘É possível verificar, é possível um laudo sobre a autenticidade/origem da imagem? É possível dizer se vieram ou não do Arquivo Público?’.’


Doutor em ciência da computação pela Universidade de Pennsylvania (EUA), ele diz que foi o primeiro laudo externo que produziu em sua carreira. A ficha questionada era uma das imagens que ilustrava a reportagem original cujo título foi: ‘Grupo de Dilma planejou sequestro de Delfim Netto’.


Na carta à Folha, Dilma escreveu: ‘Reitero que jamais fui investigada, denunciada ou processada pelos atos mencionados nesse documento falso e de procedência inidônea, ao qual não se pode emprestar nenhuma credibilidade’.


A Folha tem procurado checar a autenticidade da ficha. Foram contatados três peritos de larga experiência na análise de documentos e um especialista em imagens digitais.


Todos disseram que teriam dificuldades em emitir um laudo, pois necessitavam do original da ficha, que nunca esteve em poder da reportagem. Disseram que a análise de uma imagem contida num e-mail não seria suficiente para identificar uma eventual fraude.

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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)