Thursday, 16 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Mulheres espancadas na mídia

Deu na Veja, portanto agora é oficial: mulheres de classe média também são vítimas da violência doméstica. E também agüentam caladas até chegar ao limite do insuportável:

‘Pesquisa da Organização Mundial da Saúde divulgada no ano passado mostra que no Brasil 29% das mulheres relatam ter sofrido violência física ou sexual pelo menos uma vez na vida, sendo que 16% classificaram a agressão como violência severa – ser chutada, arrastada pelo chão, ameaçada ou ferida com qualquer tipo de arma. Apesar disso, 25% não contaram a ninguém sobre o ocorrido e 60% não saíram de casa sequer por uma noite em razão da violência. Menos de 10% recorreram a serviços especializados de saúde ou segurança. A experiência internacional nessa área indica que, em média, a mulher leva dez anos para pedir socorro. O filósofo britânico John Stuart Mill (1806-1873) escreveu em seu célebre ensaio A Sujeição das Mulheres que o recurso à força física por parte dos homens era, no fim do século XIX, o único resquício do tempo das cavernas que ainda resistia ao avanço da civilização. É trágico constatar que no começo do Século XXI a brutalidade atávica do forte contra o fraco continue a ser tão prevalente na relação dos casais’ (Veja, 11/3/06).

A violência doméstica foi discutida na edição anterior deste Observatório no artigo ‘Quando a discriminação vira notícia‘, quando cobramos da imprensa o fato de o assunto só ser discutido uma vez por ano, no dia 8 de março. E a própria Veja, em sua matéria séria e bem documentada, confirma isso, ao usar informações de uma pesquisa divulgada pela OMS no ano passado.

O atraso não invalida o trabalho feito agora. Principalmente porque, quando assuntos desse tipo são tratados em publicações de grande circulação, acabam ganhando espaço nas conversas de bar, salões de cabeleireiro, consultórios médicos e butiques onde circulam as leitoras de classe média, personagens da matéria.

Parte do coquetel

Se a Veja ou a TV Globo falam de um assunto – especialmente assuntos polêmicos como a violência doméstica –, a classe média ganha um novo tema para suas conversas sociais. Se ‘deu na Veja‘ ou ‘deu no Jornal Nacional‘ o assunto vira tema em conversa de salão. Pode ser que, na esteira da Veja, as revistas femininas se animem a voltar ao assunto e que os jornais, em geral tão reticentes em tratar do tema, sintam a obrigação de dar o troco e ir mais fundo no tema. O problema será se jornais e revistas esperarem o próximo Dia Internacional da Mulher ou que alguma celebridade acabe na polícia por bater na mulher.

Até lá, mulheres ricas ou pobres vão continuar vítimas de violência. Podem fazer boletim de ocorrência e nada vai acontecer ou ser noticiado. Como disse à Veja a socióloga Tânia Rocha Andrade Cunha:

‘O silêncio em torno desse tipo de violência é resultado de um poderoso coquetel cultural, que coloca a mulher em situação inferior à do homem e, no caso da relação conjugal, mais do que isso. Na cultura patriarcal, o marido acha que tem plenos poderes sobre a mulher. Essa situação banaliza a violência como algo que ‘faz parte’ da vida de qualquer casal. Nessa categoria do ‘faz parte’, tenta-se colocar no mesmo nível os embates verbais mais acalorados que ocorrem em qualquer casamento e agressões físicas que vão de safanões e puxões de cabelo a assassinatos. A banalização da violência doméstica é o pano de fundo que explica a maneira pela qual a sociedade lida com (ou ignora) o problema. É o clássico em briga de marido e mulher não se mete a colher’.

Infelizmente a imprensa faz parte do coquetel citado pela socióloga e acaba considerando a violência doméstica assunto que não merece ser divulgado. A não ser em casos excepcionais, como nas comemorações do Dia Internacional da Mulher.

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Jornalista