Thursday, 09 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O autoritarismo veste toga

A prática jornalística, que há muito anda abalada e atualmente se encontra em estado de desamparo constitucional, pela derrubada da Lei de Imprensa e perda da exigência do diploma para o exercício da profissão, agora revive as repressões ditatoriais por meio da censura imposta pela Justiça.

Há poucas semanas, dois jornais de grande circulação, O Estado de S. Paulo (SP) e A Tarde (BA), foram obrigados a calar diante de fatos irregulares que incidem em ‘homens de poder’. Por via judicial, magistrados que pouco se importam com a liberdade de imprensa confiscaram o direito do cidadão à informação, além de demonstrarem simpatia ao regime político tirano com as decisões de retaliação tomadas por cada um.

A fim de blindar os Sarneys, o desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), proibiu o jornal O Estado de S. Paulo e o portal Estadão, de publicar reportagens contendo informações sobre a operação Faktor, da Polícia Federal, na qual o empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney, está supostamente envolvido em práticas irregulares. A decisão do desembargador, que estende a proibição aos demais veículos de comunicação, como emissoras de rádio e TV, além de jornais impressos e eletrônicos de todo o país, condena quem utilizar ou citar material publicado por O Estado de S. Paulo a pagar multa de R$ 150 mil para ‘cada ato de violação do presente comando judicial’.

Multa diária de R$ 5 mil

O fato é que na edição de 22/7 o jornal paulista apresentou a transcrição de telefonemas interceptados pela Polícia Federal, com autorização da justiça, que acabou não agradando a muita gente. Na conversa gravada, Fernando, a filha e o vovozão Sarney, acertam secretamente a nomeação do namorado da neta para um cargo no Senado.

Já no caso de A Tarde, o juiz Márcio Reinaldo Brandão Braga, da 31ª Vara dos Feitos de Relação de Consumo, Cíveis e Comerciais da comarca de Salvador, vetou quaisquer veiculação de notícias consideradas lesivas à imagem e à honra (?) de um certo desembargador suspeito de envolvimento com vendas de sentenças, fato que vem sendo investigado atualmente em processo administrativo. A surpresa, nesse caso, é que o desembargador em questão, cujo nome a imprensa não pode citar, vem a ser Rubem Dário Peregrino Cunha, homem de reputação um tanto questionável, já que respondeu a processo por falsificação de documento público, falsidade ideológica e estelionato.

Caso o grupo de comunicação baiano descumpra as ordens judiciais do sr. Braga, terá de pagar multa diária no valor de R$ 5 mil.

O limite ultrajante do poder

Representantes da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Associação Nacional de Jornais (ANJ), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), órgãos internacionais de imprensa que lutam pela defesa da liberdade de expressão, como Sociedad Interamericana de Prensa (SIP), International Federation of Journalists (IFJ) e a ONG Artigo 19, além de inúmeros cidadãos que acompanham os casos, repudiaram o desmembramento judicial de censura aos veículos de comunicação.

Coincidentemente (?), por detrás da toga o autoritarismo estampou sua cara. Mas não cabe a mim (que sou apenas uma jornalista de diploma, e não martelo, na mão) julgar quais os verdadeiros motivos que levaram os magistrados à corrida do ‘Movimento em Defesa dos Amigos’. Só resta agora a volta da publicação dos versos de Camões, das tarjas pretas nas colunas onde é proibido informar sobre ‘os intocáveis’, ou mesmo o fornecimento de receitas de culinária, dada a circunstância de que os profissionais de imprensa, de acordo com o exmo. ministro do STF Gilmar Mendes, exercem funções semelhantes aos cozinheiros.

Eles não sofrem de amnésia e disso temos plena convicção, mas esquecem que o atual regime democrático brasileiro deve ser soberano também no ato de divulgar informações. Se for o caso, o jornal e o jornalista podem até ser processados pelo que publicaram, mas coibidos de revelar os fatos é deveras ascender ao limite ultrajante do poder.

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Jornalista e pós-graduada em Comunicação e Turismo, Salvador, BA