Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O clima quente sopra sobre a imprensa

Os resultados do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), apontando a ação antrópica sobre a potencialização do aquecimento global, provocaram no meio científico uma corrida pelo aprimoramento de estudos e a revisão de teses e hipóteses. Em paralelo, segmentos do mesmo universo passaram a contestar frontalmente a influência do homem no efeito-estufa. No meio desta batalha que se arrasta sob intensos tiroteios, a imprensa leiga tem apresentado dificuldades em encontrar o foco da questão.

A discussão criou um cisma no então hermético mundo científico. Grande parte dos revoltosos usou em suas argumentações uma possível exclusão dos estudos divergentes dos apresentados no painel e a marginalização dos que postularam sob essa ótica. O interessante desse processo, iniciado na Inglaterra, foi o uso da própria imprensa generalista – tão criticada num momento inicial pelos opositores das conclusões do IPCC – para disseminar a contestação.

O debate fugiu da frieza dos papers reproduzidos nas publicações científicas para ingressar em acalorados embates via imprensa. No final de 2007, pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foram surpreendidos logo após suas apresentações, num encontro no Rio Grande do Sul, por um colega que em altos brados os tachou como ‘terroristas’ da ciência.

Surge, então, um novo fato. O que era para ser uma discussão de alto nível intelectual tem mais se assemelhado com uma troca de tapas de boteco, com direito a rolar pela sarjeta. E assim o deus da ciência recriou o homem.

Dogmas de fé

As ofensas camufladas por academicismos surgem a todo instante, das formas mais grotescas possíveis, seja em blogs, foros de discussões e órgãos de imprensa, numa estratégia voltada apenas para desqualificar seus alvos, constantemente nominados e achincalhados. Não se preserva ninguém nem nada nesta guerra de egos. Neste vale-tudo científico abusam-se das informações de fontes duvidosas, muitas delas sequer com o reconhecimento científico necessário para serem veiculadas.

O que se nota é o óbvio: se depender de consenso científico o planeta pode se preparar para arder em brasa pela ação antrópica ou torrar num ciclo natural de aquecimento planetário.

As causas da intensificação do aquecimento global ou de sua ausência, dentro desta antipanacéia, se tornaram algo de crença pessoal. Ou, pior, de fé e mistificação do conhecimento que se pretendia racional. A discussão sobre o futuro da supremacia humana sobre o planeta tem ingressado no perigoso terreno da suposição, reforçada por religiosos oportunistas que buscam fragmentos dos discursos científicos para intensificar dogmas de fé como o anúncio do Armagedon – exaustivamente evocado ao longo da civilização cristã.

Lobo do homem

Os cientistas estão se distanciando do foco principal dos estudos para se engalfinharem num momento crítico para a opinião pública. A imprensa em todo mundo assiste e reporta essa fogueira de vaidades, a qual acaba usada como lenha para aumentar o poder de combustão desse processo. Despenca aos poucos o templo da racionalidade que sempre abrigou os seguidores da ciência. E agora se questiona quem são esses: os profetas do caos ou lobistas de grandes interesses corporativos mundiais?

Os contornos agressivos e sectários desta discussão, que tende a crescer ainda mais nos próximos anos, têm abalado instituições até então inquestionáveis quanto a sua credibilidade. O que poderia amplificar o conhecimento geral se tornou numa guerra fratricida, situada na Babel das academias. Pequenos se esforçam para abater os grandes, porém longe do simbolismo de Davi e Golias e mais próximos a razões do mais raso oportunismo.

Perde com isso a sociedade, em todas suas estâncias, inibe-se a iniciativa pelo palavrório inútil, alija-se a imprensa da possibilidade de informar corretamente. E mostra-se, escancaradamente, que desde a época de Thomas Hobbes pouco se alterou a natureza humana: o homem continua sendo o lobo do homem. E revela o motivo pelo qual a vaidade foi retirada dos sete pecados capitais, pois só ela consegue sobrepujar todos os demais e, ante tal força motivadora, foi resguardada.

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Jornalista, pós-graduado em jornalismo científico