Tuesday, 14 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O futuro do pretérito e a miséria da mídia

O futuro do pretérito funciona? É claro que sim. Expressa dúvida ou questionamento – seria isso ou aquilo? – remorso e arrependimento – não deveria ter feito tal coisa, se tivesse tomado tal e tal atitude, teria sido melhor – ou cognições modais e imperativos – diante de um quadro assim, seria apropriado agir desse modo (ou isto deveria ser assim ou assado). A linguagem é uma teia de instrumentos lançada sobre o real. Ela torna possível expressar nossa vida mental, apreender o mundo e transformá-lo.

A própria linguagem é uma modalidade de ação e, quando agimos, alteramos a realidade. Para o bom jornalismo – uso aqui o termo bom no sentido aristotélico, ou seja, no sentido do bem a ser perseguido em cada assunto por homens instruídos – o cuidado com a linguagem é vital. O jornalista pode estar informando, opinando, não importa. Procurar ser preciso no emprego das palavras, cuidando para que não haja equivocidade nelas; buscar assim a clareza e a objetividade da narrativa (já disse, pode-se estar opinando ou informando); não especular – banindo, por isso, construções lingüísticas que possam levar à confusão –, enfim seguir as regras da pragmática jornalística que são, enfatizo, incontornáveis.

O rigor textual decorre desses compromissos com o uso da linguagem. O jornalismo não é propaganda e não pode partir de distorções alucinatórias muitas vezes produzidas pela propaganda, que o tornam enviesado. O jornalismo é a antipropaganda e deve partir da verdade que persegue. No jornalismo, a verdade perseguida é a correspondência com os fatos. Não é a verdade pragmaticista (não confundir com a pragmática inerente ao jornalismo), nem coerentista, nem idealista. Essas concepções filosóficas da verdade disputam com a idéia da verdade como correspondência (com os fatos) a posição lógico-filosófica mais consistente.

Critérios ‘humanísticos’

Mas essa não é uma questão que, no jornalismo, se resolve. No jornalismo praticado desde o século 19, ela já está resolvida em suas linhas gerais: optou-se pela verdade como correspondência – entre o que se diz ou escreve e o que ocorre/ocorreu.

E o que ocorre(u)? É tudo aquilo sobre o que temos conhecimento por meio da percepção. Não pensem que isso limita o jornalismo ou o reduz a um mero empirismo. Não. É preciso enfatizar que a percepção é condicionada pela e condiciona a cognição. Trata-se da percepção alargada. É um erro pensar que mesmo os empiristas clássicos consideraram a percepção de modo bruto, digamos assim, como sendo a única fonte do conhecimento. O que eles diziam é que não há conhecimento a priori. Mas aqui já estamos longe demais. É, assim, a percepção alargada que se aplica, também, a fatos do passado, aos quais temos acesso por documentos e registros históricos de todo tipo.

O jornalista possui uma teoria aplicada da verdade: a teoria da correspondência. Não conheço outra teoria da verdade que obteve maior êxito, em termos epistemológicos e em qualquer área do conhecimento, do que a teoria da correspondência. Os jornalistas não estão sós com sua teoria aplicada. Ao lado deles estão ou deveriam estar historiadores, sociólogos, economistas. Sei que nessa área chamada humanista e/ou social aplicada (isto é só um rótulo, pois tudo é História), distinções apropriadas ao assunto, em termos epistemológicos e metodológicos, não são precisas. Matemáticos, físicos, médicos e astrônomos são muito menos infensos a especulações por terem mais clareza sobre o que é, para eles, o bem que perseguem.

De todo modo, assessores de imprensa não estão ao lado dos jornalistas. Nem publicitários, marqueteiros, futurólogos, ideólogos, utopistas, políticos amesquinhados ou de má-fé. Também cabe ao jornalista discernir o joio do trigo. Exemplo: ele pode ocupar a posição de editor de opinião e deixar passar por ali somente o que julga conforme os seus critérios ‘humanísticos’, para usar um termo da moda. Tomemos o caso de Zero Hora, edição de sexta-feira (16/1/2009), porque ilustra o ponto.

Um curioso ideologizado

Há ali um artigo – ‘Fim imediato da violência e paz definitiva’ – do deputado Adão Villaverde, do Partido dos Trabalhadores, que se diz pacifista e se refere ao atual confronto entre Israel e o Hamas (sem citar as partes). O articulista, que fala de um partido que acusou Israel de Estado terrorista (o editor deveria – uso imperativo modal do futuro do pretérito – saber disso), acena com um apelo ao entendimento entre as partes, depois de recuperar (o termo é dele) Hannah Arendt, que (cito o deputado) mostrou: (a) até que ponto chega a banalização da irracionalidade, (b) como os povos podem aderir à idéia do genocídio (c) ensinou-nos como a sociedade das nações pode ruir, se aceita o inaceitável e (d) como se desenvolve o processo de recusa ao (sic) outro.

O deputado petista não economiza adjetivos para descrever a situação. Continuo citando: as imagens de cenas (sic) absolutamente inaceitáveis que infelizmente falam por si, vemos os ‘velhos métodos’ estimuladores de e alimentadores de lógicas fundamentalistas (as aspas são do texto dele) – comparados à máquina mortífera do Holocausto.

O problema não está em Villaverde porque seu texto é uma esculhambação e demonstra, definitivamente, como um curioso ideologizado é capaz de aventurar-se a exarar sentença moral sobre assunto que ignora. Villaverde é engenheiro de profissão – a obra feita por ele não conheço – e fez carreira no PT no rastro de seu líder, o incomum Tarso Genro. O deputado-engenheiro chegou a trabalhar numa sala emprestada pela mulher do criminoso Cezar Arrieta, o maior fraudador da história da previdência social e receita federal.

Vigarice e opinião

A intenção do arrivista-engenheiro enviesado? Simplesmente condenar Israel, apelando para uma doutrina humanitarista que ele supõe extrair de Hannah Arendt. É uma agressão deslavada à memória e à obra da pensadora – que ele descreve como sendo de ascendência judaica (ênfase aqui). Hannah Arendt, que era judia (ascendência judaica é um eufemismo que Villaverde usa para atenuar o seu – do deputado –, ainda que mitigado, preconceito em relação aos judeus) jamais disse que a irracionalidade do mal é banal. Ela disse que o mal é banal. O mal racional. Ou seja, a pensadora judia disse o contrário do que Villaverde disse que ela disse.

É isto que dá, senhor editor de Opinião de Zero Hora, comer nas mãos de qualquer um. Suas demais conclusões – as de Villaverde – são igualmente estapafúrdias: Hanah Arendt nunca mostrou como os povos podem aderir à idéia de genocídio. Ela demonstrou que há e pode haver regimes totalitários genocidas, como o foram o hitlerismo e o stalinismo. A idéia de povos genocidas (ênfase aqui) é de Villaverde, não de Hanna Arendt. Qual sociedade das nações ruiu por ter aceitado o inaceitável (joguinho de palavras pedestre)? Fica a pergunta para o senhor Villaverde: o que é uma sociedade das nações? A ONU? A Comebol? Por fim, o processo de recusa ao outro. Aqui entramos no terreno de reflexão existencial. Chamem os especialistas, no caso, em delírios de interpretação.

O mau jornalismo é do editor de Zero Hora, que aceita Villaverde como articulista, pois o deputado é mero propagandista antiisraelense disfarçado de humanista. Como demonstrei, ele deturpa o – certamente – pouco que leu e ainda escreve uma enrolação. Villaverde não pode ser articulista de um jornal sério. Avanço: um jornal sério não teria, na sua editoria de Opinião, alguém que não é capaz de diferenciar vigarice de opinião.

Um jornal miúdo

Quanto ao futuro do pretérito? Mudamos de editoria, mas permanecemos no mesmo jornal. No texto jornalístico, não há lugar para ele, porque esse tempo verbal vicia a narrativa com a dúvida. E pode criar uma mentira. Darei como exemplo trecho de matéria publicada em Zero Hora na mesma sexta-feira (16/1). Segue o texto:

‘Antes, Israel já tinha bombardeado duas escolas mantidas pela ONU na Faixa de Gaza, afirmando que integrantes do Hamas tinham utilizado o local. Ontem, a explicação voltou a ser repetida pelo porta-voz do primeiro-ministro Ehud Olmert, Mark Regev, ao sustentar que militantes teriam atirado nos soldados e corrido para o prédio em busca de abrigo. Um funcionário das Nações Unidas em Gaza nega essa versão.’

Peraí: o porta-voz do primeiro-ministro disse que militantes teriam atirado etc.? Mas como? Que porta-voz imbecil é esse? Ou diz que atiraram ou não diz nada. Afinal, ele não é porta-voz do governo israelense? Nem o porta-voz do Chávez ou do Chapolin diria um negócio desses!

Estou certo de que o problema não está no porta-voz, mas na matéria de Zero Hora. A intenção era tornar suspeito aquilo que o porta-voz disse e, para tanto, usaram o futuro do pretérito para desautorizar o que Mark Regev afirmou, colocando, em sua boca, uma dúvida que ele certamente não tinha. Porque, se tivesse, estou seguro, já não seria porta-voz do primeiro-ministro israelense.

Chega a este ponto o mau jornalismo. Vale tudo para tornar a notícia mais palatável ao sabor da moda ou para descomprometer o jornal até mesmo da mais trivial narrativa de fatos. Qual era o fato, nesse caso? O dito do porta-voz, a saber: que ele sustentou que militantes atiraram nos soldados. Zero Hora, comprova-se, buscou no futuro do pretérito uma mentira conveniente.

Perceberam o truque? O porta-voz não disse que os militantes teriam atirado. Ele disse que eles atiraram. É a diferença que faz o futuro do pretérito: no caso, pretende escusar a matéria de reportar o fato, colocando sob dúvida o que o porta-voz disse. Como não dá para fazer isso narrando fatos, ou seja, dizendo ou que havia ou que não havia efetivamente militantes do Hamas no prédio da ONU, dá-se um jeitinho de inclinar a matéria para o lado preferido, no caso a ONU. Vejam como finaliza o parágrafo: ‘Um funcionário das Nações Unidas (quem, cara-pálida?) em Gaza nega essa versão.’

Seria ótimo se jornalistas fugissem do futuro do pretérito. É um tempo verbal que serve de porta de entrada para o subjornalismo ou medroso, ou irresponsável ou editorializado ou mentiroso (ou todos eles). Querem um exemplo de um jornal que o pratica? Está aí: o Zero Hora, o maior jornal do Rio Grande do Sul. Certo, é um jornal miúdo. Mas é o que temos no Rio Grande. E deveria ser conduzido por profissionais mais experientes.

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Jornalista e professor universitário