Wednesday, 15 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O jornal no picadeiro

O que faz um pai de família, com mulher e filha, no palco de um circo, tendo como cenário uma praça, um banco e um jornal que lhe serve de leitura? O aspecto dos personagens é de solidão e aparente conformismo. O que chama a atenção é, de repente, aquele leitor ser puxado para o teto da lona, por fios eletrônicos e, do alto, rasgar o exemplar, transformando-o em pedacinhos. Qual a sua intenção? Pense.

O espetáculo é aberto por uma figura que se chama Quidam (do latim ‘transeunte’). Quem é Quidam? Que mensagem apresenta esse personagem, exótico e fantástico, sem cabeça, usando um chapéu côco e um guarda-chuva, vestido com roupa folgada, que lhe aumenta o tamanho corporal? Os passos são firmes e decididos. Nada o tira do sério. Vem do nada e retorna ao mesmo destino, após uma volta pelo palco giratório. Não cumprimenta a platéia que o aplaude e delira com o seu jeito de ser. Parece um fantasma de desenho animado ou saído do cemitério. Não assusta.

O que deseja esse indivíduo? O que busca? Talvez alegria e felicidade, amor e liberdade, um mundo melhor, mais justo, honesto e humano. Quidam, que deu nome ao espetáculo, ninguém sabe de onde veio e para onde vai. É um mistério. Como não tem cabeça não faz revelações. Óbvio. Vale especular. Nós o entendemos pelas palavras do seu criador: Franco Dragone.

Um mundo melhor sem jornal?

Ninguém se iluda. Quidam não passa de um transeunte ignorado por todos nós. Uma figura mergulhada na solidão e no desconhecido, andando pelas ruas de qualquer cidade. Parece perdido. Quem o vê, sente curiosidade.

Voltemos ao pai de família sentado na praça lendo um jornal, para depois rasgá-lo sobre os espectadores. Lendo o quê? Crime, economia, fofocas, crônicas, editorial, uma entrevista sobre a guerra do Afeganistão ou do Iraque? Ou outro assunto preocupante do planeta Terra, pela ameaça da quebra da paz, como deseja o celerado e poderoso líder comunista do Comitê de Defesa Nacional da Coréia do Norte, Kim Jong-il, baixinho apelativo, que usa topete, saltinho alto e óculos à John Lennon?

Estaria o leitor a procura de emprego, notícias que falassem apenas de coisas boas, educação e saúde, doação de migalhas da mesa dos ricos aos que têm fome e precisam de trabalho? Como lia o jornal, sem que ninguém o incomodasse, imagina-se: provavelmente não gostou do conteúdo do órgão e insatisfeito, já que não encontrou o que procurava, tomou a aquela decisão… Rasgá-lo, com um misto de ódio e desprezo.

Será que o homem com esse comportamento não estaria prevendo o fim das folhas impressas e sem palavras tomou aquela atitude? Desejaria dizer que o mundo viveria melhor sem esse meio de comunicação, como afirmou Balzac, e que a internet satisfaria plenamente a curiosidade? Um mistério.

As incertezas do futuro

Todas essas cenas surrealistas se passam no Cirque du Soleil, que nasceu de artistas de rua e pobres, no Canadá e, hoje, correu quatro continentes. Uma platéia de mais de oito milhões de pessoas assistiu aos espetáculos. Lá olham um show, ao mesmo tempo, que é teatro, arte e cabeça. Provocam especulações sobre a realidade, o destino da humanidade e a falta de comunicação entre os homens. No picadeiro os artistas, entre adultos e crianças, os melhores do mundo, mostram habilidades, ao flutuarem e se equilibrar em cortinas de panos, há dança com bambolê e trabalham com um arco, num perfeito domínio do corpo, sem limite para contorcê-lo. Todos os números são olhados em absoluto silêncio. Depois os aplausos.

Quanto ao nosso leitor de jornal, há uma frase dita por um dos personagens, que se encaixaria na decisão de rasgá-lo. Como a interpretar o sentimento do jornalista pela injustiça do ministro do STF Gilmar Mendes dando fim ao diploma da categoria, grita:

Preferia não morrer

Preferia nunca esquecer.

O resto fica por conta da imaginação de quem o assistiu. Importante que o circo não explora a violência contra animais e beneficia, através de ONGs no mundo, crianças com risco de caírem na marginalidade. Que ninguém tenha medo de Quidam, o homem sem cabeça. Ele poderá estar ao nosso lado e não percebemos. Talvez esse misterioso personagem, emblemático por natureza, nos represente na caminhada pelas incertezas do futuro.

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Professor universitário e jornalista