Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O jornalismo como não queremos

Sinceramente, nunca acreditei na imparcialidade. Para mim é tudo blablablá de academia. Hoje não vou escrever na terceira pessoa para fingir que não sou eu quem pensa assim. Não vou enfiar palavras na boca das fontes ou simplesmente selecioná-las de acordo com o que quero transcrever, num ato covarde de me fazer de desentendida, como é proposto pelo jornalismo na era do neoliberalismo e da ‘democracia’. Não é isto o que está nos meios de comunicação diariamente? Na maioria das vezes, o que se vê é um lado só dos fatos e o puro massacre de outro.


Na teoria, aprendemos a ser ‘imparciais’ quando denunciamos alguma estrutura consolidada dentro do sistema capitalista. Mas, quando o assunto é servi-lo, parece que não importam as ferramentas. Serei realista: não existe de fato imparcialidade. A miséria não é imparcial, tampouco o neoliberalismo, a ditadura socioeconômica, a estrutura política ou o mercado. O sistema capitalista não é imparcial. E a mídia, extremamente comprometida com ele enquanto indústria da informação, não é imparcial. Pelo menos é o que têm mostrado veículos como a revista Veja, numa interminável lição de como não fazer jornalismo.


Não bastasse ter feito campanha eleitoral para Fernando Collor, forjado imagens para desmoralizar o MST, dado capa comemorativa ao aniversário do Jornal Nacional, entre outras pérolas, a revista tem atacado de maneira bestial os movimentos sociais na América Latina. Quem não se lembra de que em 2002, enquanto se desencadeava uma tentativa de golpe de estado contra o presidente Hugo Chávez e o povo venezuelano, a capa da Veja foi ‘A queda do presidente fanfarrão’? Insatisfeita, até hoje finge que Chávez não tem o apoio da população de seu país, confirmado por meio de referendos consecutivos. Mais uma vez vou gritar que não me interessa a imparcialidade. Eles são parciais porque têm interesses econômicos com os quais as estratégias de integração da América Latina, propostas por Fidel Castro e Hugo Chávez, batem de frente. Eu sou parcial porque estas mudanças me interessam enquanto latino-americana.


A edição desta semana (edição 1.903 – ano 38, nº 18, de 4/5/2005), com a capa ‘Quem precisa de um novo Fidel?’, chega a ser vexatória (bem que a minha mãe disse para eu ser médica). ‘Hugo Chávez está fazendo da Venezuela uma nova Cuba’. Oh, não me admira que a próxima seja ‘Fidel e Chávez organizam encontro em Cuba para comer criancinhas’. Sobre a matéria, com 10 páginas, posso falar que, no mínimo, é reacionária, toda construída para servir de cão-de-guarda e porta-voz do sistema capitalista e da elite. O que mais me choca é saber que esta revista forma opinião no país. Está na maioria dos consultórios dentários, salões de beleza e salas de espera, ao lado de revistas de fofoca e sacanagem, que o é.


Pérolas da parcialidade




‘Ditadura, ditadura, ditadura’ (a palavra aparece mais de 30 vezes)


‘Hugo Chávez adotou um virulento discurso antiamericano’


‘Por que Chávez insiste em comprar briga com os Estados Unidos?’


‘Ao ridículo da batalha dos McDonald´s e da Coca-Coca, acrescentou-se na semana passada uma iniciativa hilariante: o anúncio em Havana, por Chávez e Fidel, da criação da Alba’.


‘A Alba é mais um disparate de Chávez que não vai interessar a ninguém’.


‘Cada vez que Chávez faz declarações exageradas, como a de que a secretária de Estado americana Condoleezza Rice (entrevistada de Veja desta semana) tem uma queda por ele, Lula liga para o colega venezuelano e pede moderação. Chávez promete se comportar, mas não cumpre a palavra’


Para análise de discurso




‘O clone do totalitarismo’


‘Ameaça à estabilidade da América Latina’


‘A lei da mordaça obriga a imprensa a adotar a autocensura’


A serviço da elite e dos latifundiários




‘Não há respeito pelas regras que regem a propriedade privada’ [hahaha, essa foi ótima]


‘Ataques à liberdade econômica’


Conclusões ‘sagradas’




‘É patético. Nada disso funciona. Os brasileiros sabem disso muito bem’ (do que mesmo sabemos? Quem fala por nós?).


‘Nos primeiros momentos o governo Lula trocou juras de amor eterno com Chávez. As relações esfriaram bastante’.


‘Desde 1990, onze presidente latino-americanos foram depostos ou forçados a renunciar antes do fim de seus mandatos. Em quase todos os casos, foram derrubados por corrupção ou simplesmente porque governaram sobre economias fracassadas’.


‘Fazer avaliações desastrosas e seguir tudo o que antagonize os Estados Unidos está no DNA dos militantes de esquerda’


‘No passado a esquerda seguiu alegremente Juan Domingo Perón, cuja promessa era resolver todos os problemas da nação num estalar de dedos, e, claro, colocando a culpa nos estados Unidos’.


‘Hugo Chávez foi recebido com furiosa alegria no Fórum Social Mundial em Porto Alegre’ (a inveja mata).


‘É um espanto que tanta gente o festeje e não o Chile, o único país latino-americano a diminuir a pobreza pela metade’.


‘Sem a mesada que recebia da União Soviética, Cuba perdeu o fôlego para aventuras fora da ilha. Também já teria desmoronado sem o auxílio financeiro de Chávez. Fidel idolatra o presidente venezuelano. Vê nele a última tentativa de legar a seu povo uma herança menos amarga’.


‘O presidente venezuelano é da categoria caudilho iluminado, típico da América hispânica, cujos sonhos revolucionários resultam de fantasias muito próprias’ (ui).


Infografia terrorista (que medo!)


Na infografia completa, veja como encontrar-se como grupos indígenas, promover reuniões de movimentos sociais – tudo é considerado pela revista crime mortal.


Por que a Venezuela não é um Estado democrático


** ‘A autonomia de poderes, princípio básico da democracia, foi suprimida. Chávez ampliou o número de juízes da Suprema Corte, de vinte para 32, e preencheu os novos cargos com aliados políticos. Juízes de instâncias inferiores podem perder o emprego caso assinem sentenças desfavoráveis ao governo’.


** ‘Numa democracia, se a oposição perde as eleições, ela continua a participar do jogo político. Na Venezuela a oposição está sendo amordaçada. Um novo Código Penal, que acaba de entrar em vigor, torna ilegal qualquer forma de crítica ao governo. No momento, 248 pessoas, entre jornalistas, sindicalistas, dirigentes políticos, professores universitários e militares, já estão sendo processadas por esse motivo’.


** ‘A lei da mordaça obriga a imprensa a adotar a autocensura. Comentários ou notícias podem ser interpretados como uma tentativa de desestabilizar o governo e dar origem a um processo. Outra legislação restringe os horários em que o rádio e a televisão podem transmitir noticiários’.


** ‘As regras do jogo político e institucional mudam constantemente, uma vez que Chávez se investiu de poderes extraordinários nos sete plebiscitos que convocou e venceu’.


** ‘Não há mais respeito pelas normas que regem o direito à propriedade privada. O governo começou seu projeto de reforma agrária desapropriando uma fazenda que abriga o maior rebanho de corte do país’.


Sua majestade, a conclusão-mor


‘É a maldição do caudilhismo, a doença senil do esquerdismo.’


Oração de uma latino-americana


Deus, por favor, viabilize uma lei de responsabilidade social aqui no Brasil. Queria tanto ver moralizados os conteúdos…


Deus, você é testemunha de que os meios de comunicação na Venezuela foram capazes de promover um golpe descarado, sem qualquer compromisso político e social, puramente baseados nos interesses individuais das elites ligadas ao Tio Sam. Acabe, Senhor, com as verborragias infundadas disseminadas pelos criminosos da ‘informação’. Coloque limites nas barbaridades do chamado Quarto Poder, que se orgulha de ser formador de opinião, mas nenhuma ou pouca responsabilidade concreta quer ter sobre o que repassa. Dê juízo e consciência política e social às famílias Marinho, Silvio Santos e Edir Macedo. Vergonha na cara dos editores das publicações da Editora Abril. Amém!


Apelos à realidade


O presidente Hugo Chávez foi eleito pelo voto e sua permanência no poder foi confirmada por referendos, previstos pela Constituição bolivariana. Encabeçou uma verdadeira revolução na Venezuela, que é abafada pelos meios de comunicação ligados aos interesses econômicos, sobretudo da elite venezuelana, que explora o seu povo e, dos Estados Unidos, interessados sempre em promover a desintegração da América Latina e extorquir o petróleo abundante na região. Em 2001 tentaram promover um golpe contra o governo de Hugo Chávez, o que não deu certo graças ao povo, que foi às ruas pedir seu presidente de volta. Este mesmo povo confirmou a aprovação a Chávez em referendos desde então.


Santa da paz mundial…


Chávez aprovou este ano a Lei de Responsabilidade Social de Rádio e Televisão, que moraliza concessões e conteúdos, o que seria bom acontecer no Brasil também. Chávez vai para a rua e ouve os problemas da população num programa semanal chamado Alô presidente. Chávez está criando o primeiro veículo de divulgação e integração da América Latina, a Telesur, que envolve Brasil, Argentina, Cuba, e prevê a participação dos demais países da área. Também deu início a uma reforma agrária consistente que visa descentralizar as riquezas no país e resolverá o problema fundiário.


A revolução não será televisionada é um documentário de irlandeses que chegaram à Venezuela para fazer um trabalho sobre Chávez e acabaram presenciando o golpe. Depois de assistir, não restam dúvidas do que de fato ocorreu em abril de 2002.


Por último, gostaria de deixar uma pergunta no ar: por que na mesma edição em que Chávez é vilão Condoleezza Rice é a boazinha das páginas amarelas? Leiam a entrevista com a moçoila e vejam se não dá vontade de, a partir do enfoque da Veja, promovê-la a santa da paz mundial…

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Estudante de Jornalismo, latino-americana, socialista e indignada