Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

O jornalismo utilitário

Obcecada pelo brilho da política e da economia, a imprensa tradicional não costuma valorizar o jornalismo utilitário; talvez devesse atentar para essa função, na luta por sua sobrevivência frente à concorrência no campo digital.

No papel ou nas telinhas, os textos especializados em utilidades seguem cumprindo seu serviço, apesar da concorrência dos guias eletrônicos e dos aplicativos que praticamente adivinham as necessidades dos leitores. Por isso, pode ser instrutivo observar de vez em quando aqueles cadernos de anúncios classificados que são envolvidos por uma capa de jornalismo. No domingo (31/3), por exemplo, o Estado de S.Paulo traz três casos interessantes de reportagens usadas para embalar conteúdos utilitários.

Os exemplos poderiam ser apanhados em qualquer um dos grandes jornais, pois todos eles costumam trazer nos fins de semana alentados cadernos de publicidade, mas nem sempre oferecem textos que interessam a quem não pretende comprar imóveis ou veículos nem está procurando emprego. Quase sempre, tais reportagens são apenas justificativas para lembrar ao leitor que tem nas mãos um produto jornalístico.

Uma das reportagens citadas, espremida entre uma tabela de preços de imóveis e as páginas de anúncios, constata que, a despeito do discurso ambientalmente correto, poucas construtoras realmente adotam tecnologias para economizar água em condomínios residenciais. A preocupação em poupar ou reutilizar esse recurso natural é mais percebida em empreendimentos comerciais, onde o custo operacional parece contribuir para consolidar uma melhor consciência dos empreendedores.

Interessante observar como a adoção de hidrômetros individualizados costuma produzir mais economia de água do que nos projetos em que é feita a medição do consumo coletivo e dividida a conta entre as unidades. O texto também se refere a hábitos difíceis de superar, como o de lavar calçadas como se a mangueira fosse uma vassoura, e a falta de conhecimento comum sobre como detectar vazamentos.

Embora pareçam simples, reportagens como essa ajudam a desenvolver o espírito comunitário e a consciência do interesse coletivo.

Mais otimismo

Outro texto, que abre o caderno “Empregos & Carreiras”, traz uma pesquisa sobre as principais preocupações dos profissionais iniciantes, mostrando que a maioria prefere benefícios indiretos de longo prazo do que salários mais altos. O estudo indica que os jovens de 20 a 30 anos em ascensão nas empresas consideram mais importante ganhar participação nos lucros e resultados, previdência privada e subsídios para educação e 14º salário, mesmo com rendimentos um pouco menores.

Também se pode destacar, na mesma edição dominical do Estadão, a reportagem que abre o caderno “Oportunidades”, sobre um estudo do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), revelando que os responsáveis por empresas de pequeno e médio porte estão mais otimistas neste início de ano. A pesquisa, feita em todas as regiões do país, mostra o crescimento do otimismo em todos os setores da economia, a partir dos empreendedores que atuam muitas vezes como fornecedores de grandes companhias. O estudo, chamado de Índice de Confiança do Empresário de Pequenos e Médios Negócios no Brasil, é usado para definição de estratégia de um grande banco, por exemplo.

Eventualmente, a leitura de reportagens nos cadernos utilitários pode oferecer uma visão mais clara do estado da economia ou do efeito de mudanças na legislação, ou até mesmo a percepção de tendências importantes no mercado e na sociedade. No entanto, os diários costumam isolar esse aspecto do jornalismo apenas nos espaços destinados a anúncios classificados, que muitas vezes são descartados pelo leitor assim que pega o jornal de domingo.

Por outro lado, na competição direta com os meios digitais, a função utilitária é o aspecto mais vulnerável da imprensa tradicional em sua disputa pelo tempo do leitor. Na busca crucial de recursos para manter sua relevância nesse cenário de concorrência acirrada, talvez os jornais de papel, em sua transição para o novo suporte, devessem repensar a lógica da distribuição dos assuntos em seus cadernos. É possível que sua sobrevivência esteja mais garantida nas seções menos valorizadas.