Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O jornalista e a ciência

O jornalista especializado em ciência e meio ambiente Maurício Tuffani produziu uma matéria no OI sobre Criacionistas vs. evolucionistas – ‘O debate sabotado‘ (9/12/2008). Na sua ótica deveria haver um debate, pois entende que seriam duas alternativas de igual validade para a discussão. Em ‘A torre de marfim‘, determina a obrigação de um lado: ‘Praticamente absoluta falta de iniciativas acadêmicas para um embate entre os dois lados dessa polêmica.’ E para tal utiliza argumentos não usados normalmente pelos criacionistas, os quais sejam a metafísica, a filosofia, e ultimamente, a filosofia da ciência. Não a tradicional fonte bíblica, na qual na verdade o debate está totalmente embasado. Fala em religião como se existisse apenas uma, como ocorre com a ciência. Isto por dois sentimentos.

Ao serem criados dentro do fundamentalismo cristão, judaico e islâmico, desde a infância como verdades, não conseguem se libertar da mitologia bíblica na qual foram abusados na sua formação intelectual com histórias falsas. Outro sentimento é a tentativa de provar a existência deste seu Deus por meios inversos já tentados sem sucesso, nos séculos atrás, por Thomas de Aquino. As cinco provas que foram demolidas pelo filosofo Emmanuel Kant. O uso de provar que é necessário existir um Deus se existe um Universo. Agora, provar a existência de Deus por que a vida, na nossa falta de elucidação momentânea, necessitaria da intervenção de uma entidade inteligente, chamado desenhista pelo católico Michael J. Behe.

Valor superior

Para tanto se recorre a mal-entendidos e incompreensão do que se está lendo. Tuffani e criacionistas desejam partir da filosofia da ciência para tentar validar o que é a mesma, quando na verdade os filósofos da ciência tentaram entender o processo dela, e não determinar como ela deve ser. Para colocar a sonda espacial ‘Stardust’ (Pó de Estrelas) na rota de passagem de um cometa e trazê-la de volta, com uma carga de pó, no deserto do estado de Utah, ao noroeste dos Estados Unidos, não precisou os cientistas encarregados estarem formados em filosofia da ciência para tal. E não há como negar que fizeram.

A filosofia é que tenta entender como se dá este processo. Não é a filosofia que valida o estudo da hemodinâmica, mas apenas tenta entender como ele se dá para ampliar o seu uso, o método científico, em outras áreas. Não é o filósofo que vai validar se o transplante de órgãos é científico ou se o choque de meteoros na terra é uma constatação científica.

Dentro deste aspecto que algumas regras foram identificadas por filósofos da ciência. Principalmente das ciências naturais, mais fáceis de serem entendidas pelos leigos e menos sujeitas a serem perturbadas pelas ideologias e crenças. ‘Kuhn diz é que a classe científica, que justamente por precisar da transformação deveria ser a mais aberta a mudanças, se manifesta muitas vezes resistente. Há egos, interesses financeiros pesados, falta de ética…’ critica Tuffani na ciência. Afinal descobertas científicas podem condenar sistemas de crenças e mostrar a sua falsidade. Mas erra de forma crassa ao trazer sistemas obsoletos para tratá-lo como novidade do século 20: a Bíblia sagrada e o desejo nada inocente da religião em se impor como valor superior. Àqueles motivos alegados muito maiores e mais presentes no esforço da religião em se manter operando.

O abandono do positivismo social

Neste aspecto Karl Marx tentou dar a sua crença messiânica a característica de científica ao relacioná-la ao materialismo histórico. Assim como Ernesto Guevara afirmara a verdade científica da guerra de guerrilhas para derrubada de exércitos e governos, tal a mítica da palavra. E religiões tentam provar milagres há milênios para provar que existe uma prova científica de quebra da ordem natural para mostrar uma intervenção divina ou sobrenatural a seu favor. ‘Aquele vigente nem sempre é tolerante para com as visões mais recentes.’ Mas no caso a ‘recente’, a ‘nova visão’, não é certamente a milenar alegação da ação divina nos fenômenos corriqueiros. Está não pertence, engana-se Tuffani, na visão moderna e ‘novidade’ epistemológica no conhecimento.

No caso em pauta, colocada em dúvida pelo jornalista, se dá o mesmo. Com o uso das verdades metafísicas, que ele busca de Platão e Aristóteles, e o jornalista Michelson Borges com as revelações da Bíblia para lutar por seus fundamentos imutáveis, confessadamente nos comentários ao artigo, tentam aplicar na teoria da evolução estes métodos filosóficos para inverter o método, mas não aplicam o mesmo às suas afirmações. Não escrutinam as alegações sobrenaturais testando-as. Não foi por nada que este último, conforme informa Tuffani, o jornalista Michelson Borges, editor do site Criacionismo.com.br e da Casa Publicadora Brasileira, uma das 56 editoras pertencentes à Igreja Adventista do Sétimo Dia tenha lhe agradecido por lhe ar um falso status de ‘alternativa’ científica. Deve ser muito grato mesmo, apenas que o jornalista Tuffani não é o interlocutor para isto, fora da sua opinião pessoal. Será que Borges defenderia o ensino religioso de todas as religiões em nome da liberdade religiosa nas escolas particulares também?

Dentro das afirmações da filosofia da ciência, uma delas assegura que uma explicação que só serve para esclarecer determinado fenômeno, obviamente não é científica. Vamos dar o exemplo clássico da homeopatia, que sobrevive pela sua carga esotérica e não pela sua demonstração científica (mostrar as provas dos efeitos alegados no aparelho criado para isto: o paciente). As explicações da existência de uma lei universal da cura, da diluição sucessiva que aumenta seu poder de efeito, a dinamização, o remédio único como lei, sacudidas que transfere para a solução cada vez mais princípios ativos, o uso do semelhante (aquilo que produziu sintomas nas pessoas sadias com a solução sem diluir deve curar pela semelhança de sintomas, mas jamais pela igualdade de sintomas) só servem para explicar algo que na verdade não demonstra efeito. E na realidade contraria totalmente o conhecimento científico físico, químico, farmacológico e médico. Assim ocorre com a explicação do desenho inteligente ou a entidade sobrenatural que o jornalista tenta sair pela tangente pela metafísica, desmerecendo o método científico que a rejeitou na formação do mesmo, alegando o abandono do positivismo social de Augusto Comte, mas não da ciência.

Entendimento da natureza

Mas o uso da prova da intervenção de Deus ou deuses só serve para isto, encerrar o entendimento da formação da vida. Já foram tentados milhares de vezes para explica todos os fenômenos naturais, caídos por terra sempre que o conhecimento humano evolui. As órbitas deviam ser redondas porque Deus perfeito não faria outra forma imperfeita. Existiam sete planetas tais como existiam sete pecados capitais. A terra estava imóvel por vontade de Deus, criador do homem, o centro do Universo. E a Bíblia e os demais livros sagrados não passam disto, relatos históricos e afirmações sobrenaturais para afirmarem a sua validade como verdade de determinada crença. Piamente aceita apenas por aqueles que dela foram incutidos na infância.

E, como tal, o antigo testamente trás inúmeros erros e relatos da interpretação da época dos fenômenos naturais como sendo por intervenção divina para se validarem a si mesmo. Uma prova circular. A Bíblia é verdadeira porque ela nos diz que ela é, afirmado pelos seus crédulos apenas. Pelo sintoma Tuffani não tem familiaridade com outros textos religiosos e nem lhe aplica o método científico para analisá-los.

O publicitário Marcelo Ramos, comentarista confesso da ‘falta de uma maior familiaridade minha com o debate criacionismo/evolucionismo’, trouxe uma contribuição sobre o tema. Conforme indicado nos apontamentos sobre Teoria da Ciência, se essa rede teórica apontar para uma ampliação do conhecimento sobre o tema, o axioma e a rede teórica são válidos. Por outro lado, se suas conseqüências apontarem para uma não-ampliação dos conhecimentos dessas áreas, pode-se descartá-los.

Assim como na homeopatia, isto demonstra a sua falsidade, por não ter ampliado o conhecimento, apenas ser usado para ‘explicar’ a si mesmo, e mostrar no campo científico a sua impossibilidade teórica visto na prática, pois não amplio o conhecimento médico, assim a explicação dos desenhistas inteligentes fica no mesmo pé. Não amplia o nosso entendimento da natureza. Não chegaríamos a pousar na Lua ou enviar um robô a circular no solo marciano se acreditássemos que os fenômenos naturais são obras de deuses e impossíveis de serem desvendados. Ele não é minimamente explicativo em não ampliar o mecanismo do fenômeno para outras áreas correlatas.

O envio das três pombas

O estudo dos fósseis, a luta pela vida, a evolução do DNA, a anatomia comparada entre as espécies, a explicação das extinções das espécies, a estratificação dos terrenos e achados geológicos. Até mesmo Deus é uma explicação que não se sustenta na própria religião na medida em que existe a crença em milhares delas e de milhares de deuses, como livros atribuídos serem sagrados. O que determina cada crente é a sua educação e não o reconhecimento de uma verdade. Michelson Borges não propõe que estas alternativas de igual valo de base religiosa sejam ensinadas nas aulas de catecismo em nome da liberdade que quer para ensinar religião como ciência.

Outro dado de análise sobre o conhecimento é a capacidade do mesmo ser falseável. Assim, ao detectarmos na Bíblia coisas que contrariam o conhecimento científico e razoável, podemos detectar, como fazem os cristãos em outros livros tidos como tal, sagrados, que ela encerra inúmeros erros primários. Motivados não para garantir a sua revelação, mas apenas por representar a ignorância da época. Como a explicação de Deus, neste livro apenas, fazendo a terra em seis dias. A Arca de Noé. O entendimento do mundo como apenas aquele minúsculo local onde viviam os primitivos povos semitas.

Todos são demonstrações que mostram a falta real de conhecimento de quem a escreveu. Nem mesmo histórico ele pode muitas vezes ser considerado. Muito menos doutrinário quando este Desenhista Inteligente (?) teria escolhido um povo que depois o trocou por outros. Roubaram a saga mitológica dos judeus.

Por que o mito de Noé é falso? Primeiro construir um barco daquele tamanho exigiria uma tecnologia não conhecida na época mesmo por pescadores. Depois os custos financeiros que poderiam ser bancados apenas por um rei, que não o faria para um qualquer ele mesmo perecendo. Noé e nenhuma pessoa poderiam reunir animais de toda a terra. Muito menos neste pequeno barco para esta tarefa de salvação. Grande e caríssimo demais para uma família construir, diminuto para reunir os seres vivos da época. Até hoje não descobrimos todos os seres vivos, imagine Noé fazendo isto? Ainda mais que teriam que se reunirem alimentos para eles por tempo indeterminado, a não ser que soubesse que seria apenas 40 dias. Razão que dispensaria o envio das três pombas.

Credos impostos a espada e fogo

Não existe evidência geológica desta enchente, nem no DNA humano e nas espécies animais do globo ou da região, nem nas raças humanas que existiam na época. Todos deveriam ser descendentes de Noé se tivesse havido uma extinção local ou global. Não daria tempo para a formação das raças existentes na época de Moisés. Não existe prova desta extinção no globo. Como não existe água suficiente no planeta para cobrir toda a terra. Nem a origem comum da sobrevivência apenas de um povo semita. Na verdade este mito garantido pela Bíblia contraria todo o conhecimento científico e ainda assim, abusivamente, impiedosamente, se dá como prova da vontade de Deus no catecismo das crianças inocentes. Maurício Tuffani defende a igualdade de peso para ser ensinado para crianças a alegação da Bíblia, visto outras religiões e filosofias metafísicas descordarem dela. Qual o motivo que ele elegeu esta apenas?

Não existe nenhum debate científico, seja pela Bíblia seja pelo alegado Desenhista Inteligente coringa do novo crente. Também chamado de Grande Arquiteto, Grande Curador, Grande Engenheiro, Grande Juiz do Universo e por aí vai infinitamente. Não existe liberdade científica de ensino quando na verdade se volta a ensinar credo fundamentalista no lugar da ciência de verdade. Trata-se do apelo ao argumentum ad ignoratiam. Usado exaustivamente para provar a existência de Deus e deuses na história da humanidade pela prova inversa. Pelas conseqüências, teria que existir um criador como as obras humanas. Aquela que Kant desmascara.

‘A metafísica tem a ver com proposições sintéticas a priori‘ – Prolegômenos à toda metafísica futura. os juízos sintéticos são a posteriori. Eles dependem da experiência. A base da filosofia de Kant (1724-1804) está na teoria do conhecimento. Deseja saber, mas sem erro. Para tanto, elabora-a na relação entre os juízos sintéticos a priori e os juízos sintéticos a posteriori. Aos primeiros, chama-os puros, que caberia à matemática desvendá-los (A lógica); aos segundos, de fenômenos, influenciados pela percepção sensorial.

Nesse sentido, o idealismo e o criticismo kantiano nada mais são do que seus próprios esforços para aproximar o fenômeno à ‘coisa em si’. É tentar transformar valores metafísicos, ou lógicos, isto é: arbitrários, em valores empíricos, estes demonstrásseis pela experiência. E deuses, entidades metafísicas inventadas a priori, não são provadas a não ser pela espada e o fogo. Razão pelas quais seus seguidores se debatem por milênios tentando provar a existência dos seus contra as razões arbitrárias dos outros. Não é por outro motivo que estas criações não se ajustem ao mundo científico, da qual não fazem parte, como não produzam efeitos supostos acreditados pelos seus crentes.

Maurício Tuffani engana-se de que ciência e conhecimento possam ser estabelecidos fora do ‘encastelamento na torre de marfim’, com a participação do debate público nos meios de comunicação… Foi o que tentou fazer por algumas semanas tentando criar descrédito do conceito da morte cerebral. Uma decisão que só pode ser feita por neurologistas dentro da ciência. E neste tema acredita que deve se abandonar às bases do conhecimento científico, o método científico, mesclando com credos majoritários, oriundo do templo cristão, impostos a espada e fogo, para o leitor ‘escolher’ qual lhe agrade, como se este pudesse determinar a forma da Terra ou a constituição de Júpiter por eleição popular. No caso, como se deu a origem da vida.

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Médico, Porto Alegre, RS