Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O mi, mi, mi da cultura

Nos últimos dias, vimos novamente vir à tona o acirrado debate que envolve o uso dos recursos públicos destinado à cultura via Lei Rouanet. O debate, dessa vez iniciado com a publicação de um artigo da atriz Fernanda Torres na Folha de S.Paulo, decorrente de uma entrevista dada por Francisco Bosco, atual presidente da Funarte, ao jornal Valor Econômico. A atriz defendia a permanência de um status quo pelos grandes produtores e artistas inseridos no mainstream, em oposição ao que afirmou Bosco. Bosco, por sua vez, rapidamente respondeu publicamente a Fernanda Torres, usando o mesmo jornal e, como é de seu costume, fez uma análise mais consistente e realística sobre o problema.

Novamente o que foi colocado em pauta são os usos dos recursos via Lei Roaunet: quem pode e quem não poderia usar a Lei. Fernanda Torres alega que todos podem usar a lei, pois em sua análise não há parâmetros reais para se medir o que é um artista consagrado. Por outro lado, Bosco afirma que artistas de renome, como seu próprio pai, o músico João Bosco, não deveriam se valer do uso da Lei Roaunet, visto que, a priori, têm condições de se inserir dentro da atual estrutura do mercado – sem, portanto, precisar de recursos públicos para financiamento de seu trabalho.

Embora o mecanismo seja um dos grandes impulsionadores da cultura no Brasil, o Estado, em alguns casos (não é em todos os casos), abre mão de 100% do valor que seria arrecadado aos cofres públicos para incentivar o mercado cultural no país. A questão é que esse mesmo Estado não tem qualquer gerenciamento sobre esses recursos, que são definidos pelas empresas e geralmente destinados a projetos comerciais de grandes produtoras culturais e renomados artistas, que acabam trazendo maior retorno de mídia aos “investidores” – daí decorre o eterno debate em torno da Lei. O fato é que a Lei Rouanet precisa, sim, ser revista, como já aponta a atual gestão do Ministério da Cultura liderada pelo ministro Juca Ferreira, no sentido de equalizar melhor a distribuição dos recursos e a participação efetiva das empresas.

A Lei é a mesma para todos

O equívoco é que o debate parece girar em torno do grande mal gerado pela Lei Rouanet ao mercado cultural brasileiro, enquanto que, em verdade, a Lei é um importante mecanismo de impulso desse mercado, ainda que concentrada na região sudeste e distribuída de forma desigual. Trata-se, antes, de fazer os ajustes fiscais necessários para que as empresas passem a contribuir com algum percentual mínimo (em todas as linhas de atuação da Lei) sobre o valor destinado ao projeto, diminuindo o ônus financeiro do Estado nesse mercado e, especialmente, criando nas empresas brasileiras uma responsabilidade sociocultural com participação financeira nos projetos destinados à cultura, como já é muito comum nos Estados Unidos.

Parece-me que os males maiores (e não o mal) da produção cultural brasileira giram dentro de outras esferas: o reconhecimento desse setor como mercado, a organização desse mercado enquanto setor produtivo e gerador de riqueza e trabalho e, por fim, a profissionalização da área.

Explico: primeiro, há no Brasil quase uma unanimidade de pensamento em tratar a cultura como um setor educacional e de formação cidadã. A cultura, especialmente quando financiada com recursos públicos, deve ser isso também, mas ela precisa, urgentemente, ser reconhecida como mercado, como geradora de riqueza e postos de trabalho e, por conseguinte, ser regularizada com apoio estatal. Dentro do meio da cultura poucas pessoas têm coragem de tratar desse assunto como mercado. Ouso dizer que no Brasil pensar a cultura como mercado soa quase como uma heresia. Particularmente, acredito que é necessário, sim, haver espaço para as criações mercadológicas. O projeto ideal, a meu ver, como os que venho tentando desenvolver nos últimos anos, é aquele que movimenta a economia e fomenta a reflexão, mas sem se sobrepor àqueles que optam por uma ou outra via.

Cabem aqui duas breves perguntas: a) é ético, dentro de uma área com esparsos recursos, um artista de renome usar a Lei Rouanet? Creio que essa resposta muitas vezes só o próprio artista terá. Digo isso porque mesmo um artista de renome tem dificuldade em conseguir patrocínio para o seu projeto. A maior parte dos projetos, mesmo de renomados artistas, ao contrário dos que as pessoas pensam, não é realizado, e geralmente por falta de patrocínio. No Brasil, o patrocínio ainda está muito mais associado aos contatos pessoais do que ao reconhecimento público de um artista. Ter um bom contato na agenda é muito melhor que ter um reconhecido artista no elenco. Nesse sentido, o mercado brasileiro ainda é extremamente amador e pessoalista, o que é péssimo para a classe cultural como um todo, especialmente para a minoria que visa elevar o nível da produção. b) é ilegal um artista de renome usar a Lei Rouanet? Essa resposta podemos afirmar com veemência: não! A Lei é a mesma para todos, seja para mim, pequeno produtor, seja para o Roberto Carlos.

Uma proposta mais justa e igualitária

Segundo, reconhecendo esse setor como produtivo e gerador de riqueza (creio que já estamos caminhando lentamente nessa direção, ainda que muitas vezes inconscientemente), é necessário que o Estado atue de forma a desonerar a cadeia produtiva da cultura como forma de impulsionar seu desenvolvimento. Atualmente, uma pequena produtora cultural, e falo com conhecimento de causa, é regulamentada pelas mesmas leis aplicadas às grandes corporações e recolhe os mesmos impostos que empresas que lucram milhões, ainda que muitas das produtoras estejam enquadradas no Simples. Alguns militantes e produtores da cultura vêm batendo nessa tecla há tempos dentro dos debates públicos promovidos pelo setor cultural.

Terceiro, e último, essa discussão me parece muito impulsionada pela profissionalização que o setor vem sofrendo nos últimos 20 anos. Marcado especialmente pela criação da graduação em Produção Cultural na UFF, em Niterói, RJ, onde sou formado, o setor vem, ano a ano, somando mais pensadores críticos e excelentes profissionais que de forma geral se adaptam com mais facilidade à realidade do mercado. A discussão gerada a partir do artigo da Fernanda Torres traz um elemento que me parece mais importante: ele é o reflexo das elites do campo cultural tentando se perpetuar no poder. A meu ver, essa perpetuação está sendo ameaçada especialmente por dois grupos, um oriundo das universidades e outro oriundo da periferia, que vêm se colocando muitas vezes acertadamente na pauta política que envolve essa discussão e sabendo manejar muito bem os trâmites para utilização dos recursos públicos e privados de incentivo à cultura. Sem muito mi, mi, mi, esses grupos parecem estar conduzido o debate cultural no Brasil a outro patamar, ao que me parece, inicialmente, mais justo e mais igualitário que o sistema atual vigente.

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Valterlei Borges é produtor cultural e mestre em Ciência da Arte. É autor de Novos modelos de produção musical e consumo (EdUFF, 2014)