Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Os reis do Rio

O Rio de Janeiro explica-se trivialmente. Mesmo o cidadão-de-bem é consciente da sua não-inocência. A união cultural herdada da monarquia funde os indivíduos em uma massa de bajuladores: é o modo de produção do capitalismo carioca. O súdito não tem direitos plenos sobre o que quer que seja, pois tudo é propriedade do rei. O rei não tem poder porque é inócuo usar mercenários contra os (já) degredados. O povo sem propriedades e a nobreza impotente unem-se e, como resultado, as concessões recíprocas da bajulação proliferam.

O conceito controvertido de botar-um-samba exemplifica. Segundo o relato de Aloísio Martins, membro da ala de compositores da Escola de Samba Grande Rio, há cariocas orgulhosos da dificuldade interposta entre os compositores proponentes e a glória na Sapucaí. Não basta o samba ser bom. Submetê-lo significa empenhar dezenas de milhares de reais nas diversas fases, absolutamente desnecessárias, para aferir a qualidade musical, da seleção. O compositor que conseguir subornar, qualificadamente, a maior quantidade de pessoas terá sua obra escolhida. Os setenta efêmeros minutos do desfile são o auge do prêmio; recitar alegre, entusiasmada e submissamente os versos repetitivos da canção é a contrapartida paga pelos membros mais humildes da Escola. Aos menos humildes, turistas anglófonos, basta comprar a fantasia descartável.

A semântica da constrição

Contrariando a economia keynesiana, o capitalismo carioca fundamenta-se mais pelo comércio das vaidades do que pela promoção da sensação de segurança. O suborno qualificado, assim como as ciências humanas e a publicidade, não se ordena sob regras precisas. O maior gastador só tem chances de ser eleito se gastar adequadamente. Quanto, para quem, como, quando e onde são manejados com o fim de bajular a massa, o que implica em conhecer seus códigos. O dinheiro tropical é efetivo tanto quanto promova aquele que o recebe, a sensação de ter sido individualmente apreciado. Os bajuladores profissionais estendem o modus operandi carnavalesco para a totalidade do espaço-tempo social carioca, permitindo a explicação trivial: o carnaval está para o Rio, assim como a omertà está para a Sicília. Em ambos, a interferência do coletivo problematiza a simplicidade teórica da dicotomia entre o público e o privado. Finalmente, a explicação trivial reside na transgressão generalizada e na cumplicidade conivente denunciadas nos filmes de José Padilha.

Nesse contexto, comove o comportamento da imprensa aliada aos poderes da burocracia claudicante. Antes de direcionar a plateia doméstica às previsões do tempo, a âncora do noticiário matutino da TV Globo Rio constringe voz e face, ao relatar tiroteios e mortes da madrugada suburbana. A semântica da constrição, porém, contradiz a recorrência diária dos eventos.

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Filósofo computacional, Rio de Janeiro, RJ