Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os rescaldos da cobertura local

Em menos de cinco minutos, 239 pessoas morreram e mais de cem ficaram feridas no mais grave incêndio ocorrido no Brasil nas últimas cinco décadas. Na madrugada de 27/1, o integrante de uma banda que se apresentava em uma festa na boate Kiss, em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, disparou um sinalizador durante um show. As labaredas se espalharam rapidamente pela espuma do isolamento acústico da casa noturna. A maioria das vítimas, jovens entre 18 e 25 anos, morreu intoxicada pela fumaça.

Uma sucessão de falhas causou a tragédia. O alvará de funcionamento da boate e a licença do corpo de bombeiros estavam vencidos. Há denúncias de que a casa estaria superlotada e não cumpria as normas de segurança. Um mês após o incêndio, o Observatório da Imprensa (26/02) exibido pela TV Brasil relembrou os momentos mais marcantes dessa cobertura pela ótica da imprensa regional.

O programa contou com a presença do editor-chefe do jornal Zero Hora, Nilson Vargas, direto de Porto Alegre. Nascido em Santa Maria, Nilson foi um dos primeiros jornalistas a chegar à boate e coordenou a cobertura do jornal. Um dos criadores do Diário de Santa Maria, o jornalista trabalhou na Editora Abril e foi editor-chefe do Diário Catarinense. Em São Paulo, o programa recebeu os jornalistas Eduardo Geraque e Leão Serva. Geraque cobriu o incêndio pela Folha de S.Paulo, onde é repórter do caderno “Cotidiano”. Doutor em Jornalismo Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP), também atuou na Gazeta Mercantil e no Diário Popular. Leão Serva trabalhou na Folha de S.Paulo, foi um dos criadores do jornal eletrônico do portal iG, o Último Segundo, e foi o responsável pela mudança editorial do jornal Diário de S.Paulo.

Complementação vs. competição

Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines destacou o caráter complementar das mídias nacional e regional: “A grande imprensa não existe solta no espaço, seus atributos dependem dos atributos do espírito cidadão que circula em sistemas de alto-falantes, rádios e tevês comunitárias, jornais de bairro, semanários e diários regionais. Quem sofre o primeiro impacto é o jornalista local, sua sensibilidade e discernimento são essenciais, seu espanto ou sua dor são decisivos”.

Ainda antes do debate, o programa exibiu uma reportagem com jornalistas de Santa Maria. Luiz Roese, repórter do jornal A Razão, um dos mais importantes da região e que está nas ruas há quase 80 anos, relembrou os primeiros momentos da cobertura: “Estava dormindo quando recebi um telefonema de uma editora de jornal no qual trabalho. Quando cheguei, o cenário ainda era meio caos. Gente correndo, ambulância saindo, os bombeiros tentando apagar incêndio, os bombeiros com jato d’agua forte na porta da Kiss. Ainda tinha gente que conseguiu sair da Kiss viva e estava por ali, meio zumbi, meio tonta, meio baratinada”.

O editor interino da RBS em Santa Maria, Luis Eduardo Silva, também chegou à boate instantes após as equipes de resgate e descreveu o impacto daquelas cenas. “Jovens, jovens mesmo, 16, 17, 18 anos, chorando na beira da calçada. Ambulâncias para tudo que é lado, carros de bombeiros, muita gente chorando, muita informação desencontrada, os policiais não sabiam me dizer o que estava acontecendo, era muita gente morta. Coisa que eu nunca tinha visto. Jovens, bem arrumados, bonitos, sem nenhum ferimento, mortos no chão”, contou o jornalista.

Assunto grande, equipe pequena

Vicente Paulo Bisogno, gerente de programação da Rádio Imembuí, que tem sete décadas de tradição, contou que a emissora veiculou quinze horas de programação ininterrupta: “Às quatro horas a Rádio Imembuí começou a transmitir com dois repórteres na boate e dois no plantão. Formamos uma rede, tínhamos 35 rádios acompanhando o trabalho realizado pela Rádio Imembuí. Eu sentei ao microfone às 8 da manhã e saí às 11 da noite”.

Nas primeiras horas após o incêndio, a imprensa local se deparou com uma cobertura sem precedentes na história da Santa Maria. “Encostaram caminhões da Brigada Militar do Rio Grande do Sul para retirar os corpos. E aí começou a se ter uma real dimensão de que aquilo tudo era uma tragédia. Cada viagem daquele caminhão significava cerca de 70 corpos. Foi uma viagem, foram duas viagens, foram três viagens”, disse Luiz Roese. Para cobrir esse cenário de caos, a maior parte da imprensa local contava com equipes reduzidas que muitas vezes não passavam de cinco profissionais. Roese contou que, diante da gravidade do quadro, muitos jornalistas foram espontaneamente para a porta da boate, não precisaram ser convocados para o trabalho.

Luis Eduardo Silva relatou a pressa para começar a transmitir as notícias ao vivo: “Eu conversei comigo: ‘Preciso colocar isso ao vivo, não posso dar flash, eu tenho que colocar a informação, que é o que o meu telespectador vai querer ver’. Consegui colocar um ponto [de transmissão] ao vivo por volta de 10 horas da manhã, que é um tempo curto, mas não é tão curto. Na minha avaliação, a gente tinha que ter entrado às 8 e pouco da manhã, porque o telespectador estava ligando, estava me cobrando. Só que eu estava de mãos atadas, não tinha como fazer isso sem essa estrutura mínima”.

Chegam reforços

Os mais importantes veículos do país enviaram equipes completas para complementar a cobertura. Para Airton Amaral, diretor da TV Santa Maria, canal comunitário de grande expressão na cidade, a relação entre a mídia local e a nacional foi harmoniosa: “Em alguns momentos se procurou, dentro do possível, um ajudar o outro, dividir as informações, que eram escassas nas primeiras horas da tragédia”. Luiz Roese percebeu pontos de tensão nessa convivência. “Tem pessoas que querem te ajudar, tem pessoas que te pedem ajuda e tem pessoas que [pensam]: ‘Ah, você é só um repórter de um pequeno jornal do interior do Rio Grande do Sul, então eu não estou nem aí pra ti’, sabe? Aquilo tudo para eles era que Santa Maria era uma espécie de alienígena dentro de um cenário de tragédia”, criticou.

Enquanto a imprensa local focava na prestação de serviço, a mídia nacional tentava encontrar responsáveis pelo incêndio. “Qual era a grande pergunta das emissoras de grande expressão da mídia nacional? Quem são os culpados. Qual era nossa grande pergunta? Quem são as vítimas. Nossa preocupação era com a informação”, sublinhou Vicente Paulo Bisogno. Viviane Borelli, coordenadora do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ressaltou que a imprensa nacional trabalha num ritmo diferente da imprensa regional: “Numa das entrevistas coletivas com o delegado responsável pelo caso, por exemplo, um jornal de circulação nacional queria saber ‘mas já temos um culpado?’, e o delegado dizia ‘não, até agora a gente não está investigando, a gente está tentando colocar a cidade em ordem diante disso que aconteceu’”.

As imagens chocantes da tragédia correram o mundo e colocaram a imprensa diante de um impasse. “Pelo Facebook, começaram a aparecer fotos fortes dos corpos na boate. Nós interpretamos que [a veiculação das imagens] não iria acrescentar nada a não ser chocar mais”, contou Airton Amaral. A TV Santa Maria optou por não colocar no ar entrevistas de pais ou mães desesperados pela morte trágica de um filho. “Outros veículos fizeram isso, porque há outros interesses em jogo – pela audiência, pelo Ibope –, o que não é o nosso caso. No nosso caso há um comprometimento com a cidade”, disse o jornalista.

Quando é preciso calar

No debate ao vivo, Nilson Vargas explicou que Zero Hora e a imprensa de Porto Alegre estão em uma posição intermediária entre a mídia local e a nacional. “A nós cabe um acompanhamento muito forte da investigação e cabe ainda uma postura de profundo respeito, silêncio inclusive, em relação à dor das famílias, que é muito grande”, disse o jornalista. Vargas ressaltou que este tipo de cobertura é bastante complexa e permeada por “tentáculos” tanto para a pequena quanto para a grande imprensa. “A gente tem que ser psicólogo, jornalista, especialista em segurança de edificações e incêndios, acompanhar perícias policiais com um cuidado diferenciado”, afirmou.

Eduardo Geraque chamou a atenção para o fato de que, por motivos logísticos, a maior parte dos os profissionais da imprensa nacional só conseguiu chegar a Santa Maria entre a noite de domingo e a manhã de segunda-feira. Portanto, não presenciou o dramático resgate dos corpos. A primeira dificuldade enfrentada pela mídia nacional nessa cobertura foi se situar na cidade: “Eu nunca havia estado lá antes. Você tem que saber onde era a boate, o ginásio, os hospitais”. Na avaliação do repórter da Folha, a imprensa local foi fundamental nos primeiros momentos da cobertura para que os jornalistas que chegavam se inteirassem dos fatos o mais rápido possível.

Dines comentou que um mês depois do incêndio na boate Kiss os jornais de circulação nacional reservam um espaço pequeno para a tragédia, e questionou se os repórteres que cobriram o caso não deveriam pressionar para que o assunto permanecesse em pauta. Para Eduardo Geraque, que também acompanhou a enxurrada da região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, depois que a grande imprensa deixa o local a cobertura acaba definhando. “Um ano depois da tragédia na Serra Fluminense eu apresentei uma proposta de pauta para o jornal que acabou não sendo aceita. Não foi publicado nada. Eu tinha todas as informações de que praticamente nada tinha mudado em termos do que foi falado sobre moradia em áreas de risco”, contou o repórter. Em Santa Maria, a situação tende a se repetir:

“Eu, como repórter, tento fazer o meu trabalho. Tento levantar as informações, tento ter pautas e continuar com essa cobertura. Mas, realmente, é muito complicado. Hoje, os jornais parecem que estão cortando as informações e preocupados com o dia, com aquele acontecimento das últimas 24 horas – e não deveria ser assim. Falta um acompanhamento maior dos grandes casos”, analisou o repórter. Para Geraque, a falta de espaço físico para a publicação do material e a sucessão de tragédias dificultam o acompanhamento dos casos em longo prazo.

Qual é o limite?

Um telespectador perguntou como separar o sensacionalismo dos serviços de utilidade pública em casos de grande comoção. O jornalista Leão Serva disse que é tarefa dos jornalistas verificar em que momento o tom adequado para cada situação é ultrapassado. “O sensacionalismo, costumo dizer, é a tentativa de criar sensações para além do que o fato objetivo justifica. Eu diria que, neste episódio, por tudo o que acompanhei na imprensa local e na imprensa nacional, acho que a imprensa brasileira se comportou muito bem no que tange ao exagero”, avaliou Serva.

O editor-chefe do jornal Zero Hora afirmou que a imprensa precisa estar atenta às lições deste episódio. “Já se percebe que essa tragédia foi resultado de uma coleção de erros, de omissões. O que aconteceu em Santa Maria poderia ter acontecido em qualquer boate do Brasil”, disse Nilson Vargas. Para Leão Serva, o paradigma de segurança em locais fechados deve ser mudado a partir desse caso, como ocorreu em São Paulo nos anos 1970 após dois grandes incêndios: “O aprendizado, a cobrança constante daqui para frente de cuidados, de como são feitos os alvarás, é missão da imprensa a partir desse episódio; até em homenagem às vítimas dessa tragédia, para que as suas vidas não sejam em vão”.

***

A tragédia bem de perto

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 673, exibido em 26/2/2013

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

Exato um mês depois da catástrofe de Santa Maria, que tirou a vida de 239 jovens brasileiros, o Observatório da Imprensa foi à cidade gaúcha para trazer uma história que a grande imprensa não tem condições de relatar, não é o seu papel.

Há dois anos vivemos a mesma situação em proporções muito maiores na região serrana fluminense, quando cerca de mil pessoas morreram afogadas ou soterradas por uma tromba d’agua.

Nestas duas tragédias encontramos uma personagem ignorada ou esquecida, porém essencial para a própria sobrevivência da grande imprensa nacional.

Fomos à devastada Serra Fluminense e agora à enlutada Santa Maria para buscar ecos da dor e encontramos a imprensa local, a chamada pequena imprensa, na realidade a grande pequena imprensa, infatigável colmeia que produz informações, emoções, produz sobretudo solidariedade.

A grande imprensa não existe solta no espaço, seus atributos dependem dos atributos do espírito cidadão que circula em sistemas de alto-falantes, rádios e tevês comunitárias, jornais de bairro, semanários e diários regionais.

Quem sofre o primeiro impacto é o jornalista local. Sua sensibilidade e discernimento são essenciais. Seu espanto ou sua dor são decisivos.

As catástrofes de Santa Maria, como antes a da Serra Fluminense, mostram que o sistema midiático é imperiosamente pluralista, integrado. O interesse do leitor distante vai numa direção, a palpitação do vizinho vai em outra. Juntos compõem os caminhos da verdade. Separados fazem apenas meia verdade.

O projeto para uma grande pequena imprensa faz parte da história deste Observatório. Oxalá possamos desenvolvê-lo em circunstâncias diferentes – com suor, sim, porém sem sangue ou lágrimas.

A reportagem que apresentaremos a seguir só foi possível com a participação de profissionais de imprensa de Santa Maria. Do jornal A Razão, fundado há 78 anos. Da Rádio Imembuí, que completa este mês 71 anos. Da TV Comunitária Santa Maria, criada em 2009, e da afiliada local da RBS. Profissionais que convivem com essa tragédia desde a madrugada de 27 de janeiro. E com ela ficarão para sempre.

***

[Lilia Diniz é jornalista]