Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Tróia reconstruída

A Ilíada, como a Bíblia, não teve revisores qualificados. O propósito foi uma fidelidade absoluta ao que foi encontrado nos escritos. Mas até chegar ali, as letras deram muitas voltas na tradição oral que as consagrou. E os leitores de uma e de outra dessas duas obras de referência indispensável não recriminam as contradições, antes as identificam e cultivam em contextos apropriados. Elas são o que são, a começar pela autoria, difícil de ser individualizada na primeira, impossível na segunda.

Mas quantos terão lido estas duas obras inteirinhas? Trechos esparsos são conhecidos de todos. Seus mitos, heróis, divindades, santos e lendas fundaram a nossa civilização, legando-nos um mundo de encantamento, magia, terrores e esperança.

Pois é aí que entra o papel da imprensa e, no caso da Ilíada, uma revista brasileira, aproveitando a onda do filme que nela se inspira, colocou nas bancas em maio deste ano um trabalho de alto nível, que soube combinar a precisão da pesquisa com o sabor do texto de José Reinaldo Lopes. Refiro-me à matéria de capa da revista Superinteressante (edição 200, maio de 2004). É verdade que o forte da matéria é o texto, como todo bom jornalismo ensina, mas as ilustrações e os gráficos tornaram-no ainda mais atraente e didático.

Vida longa, vida breve

Desfilam diante dos olhos do leitor os personagens emblemáticos de uma guerra travada há cerca de 3.000 anos. As tramas são fascinantes. Homero tinha o que contar e sabia como fazê-lo. O maravilhoso dos contos de fada e o surrealismo que triunfou absoluto na literatura latino-americana em décadas recentes, deixando na sombra os romances em que a figura do ditador se elevava como fundadora do texto, ganham o seu devido e pequeno lugar diante da grandiosidade de narrativas-mães, como é o caso da Ilíada.

Sexo, intriga, sedução, guerra e morte estão entre os ingredientes do sucesso narrativo da Ilíada. Tétis, a mãe do herói Aquiles, matou os seis filhos anteriores nas tentativas abortadas de destruir nos nascituros os resíduos mortais dos deuses.

Quando chegou a vez do sétimo, dia após dia ela o queimava durante a noite e, quando vinha o Sol, curava com ambrosia as queimaduras. Não queria, porém, matá-lo. Apenas deixá-lo mais forte e por isso mergulhou a criança, segurando-a pelo calcanhar, no mar Estige, cujas águas tinham o poder de tornar invulnerável aquele que nelas mergulhasse. E nascia aí a expressão ‘calcanhar de Aquiles’, para designar a fragilidade que até os fortes têm.

Aquiles teve uma alimentação caprichada. Sua dieta era composta de tutano de urso, vísceras de animais ferozes e mel, com o fim de assimilar a coragem dos animais e a doçura da substância que as abelhas produzem a partir do néctar das flores.

O herói não era guei, apesar de ter sido criado entre donzelas e ter a pele macia como a das colegas. Como ninguém conseguisse diferenciá-lo das moças, Ulisses armou um estratagema: pôs uma lança e um escudo no gineceu e mandou que fosse tocado o clarim de guerra. As donzelas fugiram apavoradas, mas Aquiles tomou as armas corajosamente para enfrentar o inimigo. Foi, então, identificado.

Os adivinhos previram que se ele não acompanhasse a expedição a Tróia, teria uma longa vida, pacata e sem glória. Se fosse, teria vida breve, mas seu nome seria glorificado para sempre. O herói escolheu a segunda alternativa e morreu jovem, em combate.

Aulas de História

Impossível alguma mulher ter beleza mais perfeita que a de Helena de Tróia, a esposa do rei Menelau que de geração em geração chegou à música nordestina nos belos versos da cantora Amelinha: ‘Mulher nova, bonita e carinhosa/ faz o homem gemer sem sentir dor’.

É seu rapto que deflagra a guerra entre gregos e troianos. É a partir de um adultério que irrompe o enredo em que personagens ganharão a imortalidade. São nossos velhos conhecidos: Páris, Ulisses, Aquiles, Odisseu, Príamo, Agamenon.

A história acaba de ser resumidamente contada no filme Tróia e muito bem explicada na matéria da Superinteressante. Além disso, Cláudio Moreno, PH.D em Letras e professor de Português em Porto Alegre, galgou a lista dos livros mais vendidos com seu romance de estréia, Tróia, o romance de uma guerra (Editora LPM).

Na canção de Zé Ramalho e Otacílio Batista, numa espécie de narrativa doida, a guerra de Tróia é mesclada às guerras de Alexandre, aos feitos de Lampião no cangaço, sobrando alusões a Cervantes. E todos entendem. Quer dizer: que bom se em nossas escolas, e não apenas nos cursinhos, os professores pudessem, a partir de bons textos, tornar atraentes as aulas de História!

Para finalizar este comentário, que saúda a reconstrução de Tróia entre nós, brindemos os leitores deste Observatório com a íntegra da letra de Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor:

‘Numa luta de gregos e troianos
Por Helena, a mulher de Menelau
Conta a história de um cavalo de pau
Terminava uma guerra de dez anos
Menelau, o maior dos espartanos
Venceu Páris, o grande sedutor
Humilhando a família de Heitor
Em defesa da honra caprichosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

Alexandre figura desumana
Fundador da famosa Alexandria
Conquistava na Grécia e destruía
Quase toda a população Tebana
A beleza atrativa de Roxana
Dominava o maior conquistador
E depois de vencê-la, o vencedor
Entregou-se à pagã mais que formosa
Mulher nova bonita e carinhosa
Faz um homem gemer sem sentir dor

A mulher tem na face dois brilhantes
Condutores fiéis do seu destino
Quem não ama o sorriso feminino
Desconhece a poesia de Cervantes
A bravura dos grandes navegantes
Enfrentando a procela em seu furor
Se não fosse a mulher mimosa flor
A história seria mentirosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

Virgulino Ferreira, o Lampião
Bandoleiro das selvas nordestinas
Sem temer a perigo nem ruínas
Foi o rei do cangaço no sertão
Mas um dia sentiu no coração
O feitiço atrativo do amor
A mulata da terra do condor
Dominava uma fera perigosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor’.