
(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
A morte de Sebastião Salgado deixará uma importante lacuna na cena da fotografia documental, especialmente por sua capacidade única de dar profundidade ao viés humano de questões históricas e geopolíticas complexas, cujas reverberações se espalham por vastos e distintos territórios globais, dando voz aos invisíveis através de imagens poderosas e atemporais.
Longe de se limitar à técnica ou à estética, o olhar fotográfico de Salgado penetra nas camadas mais profundas das sociedades humanas. Suas lentes revelam as complexas e multifacetadas realidades das sociedades humanas, expondo não só as feridas das desigualdades, mas também a força vital das resistências onde a chama da esperança insiste em brilhar. Com imagens que atravessam a vastidão de desertos e florestas, a dureza de minas e a desolação de campos de refugiados e cidades marcadas pela guerra, Salgado tem a rara capacidade de, simultaneamente, registrar e impulsionar uma profunda análise do mundo.
Obras como “Terra”, “Êxodos”, “Gênesis” e “Gold” refletem e desvendam dimensões da história contemporânea de maneira complexa e crítica. As fotografias de Salgado são um ato de denúncia visual: revelam, com crueza e empatia, as feridas deixadas por um sistema que transforma vidas em estatísticas, territórios em mercadorias e conflitos em norma da globalização capitalista.
Kossoy define a fotografia como um intrigante documento visual cujo conteúdo é a um só tempo revelador de informações e detonador de emoções (KOSSOY, 2001, p. 28). O contato com a obra de Sebastião Salgado, certamente, não permite indiferença por parte de seu público. Ao contrário, provoca sentimentos e impacta, realizando um chamado imperativo à reflexão sobre a condição humana na contemporaneidade.
“Terra” e a denúncia da injusta Estrutura Fundiária Brasileira
O livro “Terra” (1997), de Sebastião Salgado, revela, de maneira impactante, o drama dos trabalhadores rurais sem-terra no Brasil. Convém pontuar que o fotógrafo foi uma das primeiras pessoas externas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra a ter acesso a Fazenda Giacomenti, no Paraná, durante uma das maiores ocupações promovidas na história do movimento de luta pela terra no Brasil. Cerca de 15 mil pessoas participaram deste episódio histórico e Sebastião Salgado esteve ao lado destes trabalhadores durante três dias consecutivos.
A obra “Terra” ainda traz registros de outros acampamentos, como o PR 158 e o Chopinzinho, nos quais milhares de famílias ocuparam terras improdutivas que pertenciam a grandes latifundiários. Os registros contidos nas obras foram realizados entre 1980 e 1996, quando o autor se ocupou do registro de pessoas desterradas, como descreve a sinopse do próprio livro. Em “Terra”, Salgado evidencia o espaço agrário brasileiro como palco de disputas, onde de um lado temos os latifúndios vazios e do outro os barracos de lona, os acampamentos improvisados, os rostos marcados pelo trabalho. Todas essas imagens nos revelam uma geografia da exclusão, onde o acesso à terra é mediado por estruturas históricas de poder.
Convém pontuar que, após o período colonial, o Estado brasileiro deu continuidade à política que garantiu que o acesso à terra permanecesse como monopólio de uma classe social, excluindo os trabalhadores dessa possibilidade. A Lei de Terras de 1850, por exemplo, é um marco dessa política, assegurando que as terras devolutas só pudessem ser incorporadas por aqueles que já detinham propriedades e capital. Dessa forma, o trabalhador, privado dos meios de produção, não tinha outra alternativa a não ser atuar nas fazendas da grande lavoura (MARTINS, 2010, p. 56).
Para SANTOS (1996), o território não é apenas um recorte físico da terra, mas um espaço apropriado, onde se expressam conflitos entre sujeitos e instituições. Em “Terra”, o território aparece como um bem altamente politizado, controlado por poucos e negado a muitos.
O protagonismo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na obra reforça essa dimensão política. Ao retratar suas ocupações, marchas, assembleias e construções de escolas e cooperativas, Salgado não apenas registra uma luta: ele revela a emergência de novos sujeitos territoriais, que reconfiguram o espaço a partir da ação coletiva.
A paisagem rural fotografada por Salgado não é contemplativa, ela representa um campo de significados que denuncia um modelo fundiário concentrador e, ao mesmo tempo, celebra a dignidade de quem resiste à sua exclusão.
Em algumas das imagens mais dramáticas da obra, Salgado registra a violência dos conflitos no campo, com fotografias que denunciam os assassinatos ocorridos em Eldorado dos Carajás, no Pará. No episódio, policiais militares ceifaram a vida de 21 camponeses. As fotografias do triste acontecimento mostram caixões enfileirados na caçamba de um caminhão, luto e lágrimas de companheiros e familiares daqueles que foram mortos por lutarem pelo acesso à terra.
A partir do registro de todos estes momentos históricos importantes, o fotógrafo não apenas documenta estes eventos, mas também intervém na realidade social, evidenciando a necessidade da reforma agrária e da busca por uma estrutura fundiária mais justa.
“Êxodos”: as exclusões e os fluxos migratórios
Em “Êxodos” (2000), Sebastião Salgado percorre mais de 40 países para registrar refugiados de guerra, deslocados internos, migrantes econômicos e perseguidos políticos. Salgado, além de evidenciar como a mobilidade humana é menos uma escolha e mais uma imposição resultante da violência, da pobreza e da exclusão sistêmica, também escancara a geografia da negação do território. Ele revela, assim, espaços onde o pertencimento é interditado e o direito ao lugar, revogado. SANTOS (1996), reconhece que o território não é só posse da terra, mas condição de existência, e os migrantes de “Êxodos” são, acima de tudo, desterritorializados sociais.
A globalização, enquanto intensifica os fluxos de capital e mercadorias, restringe seletivamente a mobilidade humana. A obra de Salgado revela esse paradoxo: o mundo é cada vez mais interconectado, mas os corpos dos mais pobres permanecem bloqueados, barrados e expulsos. Dessa forma, as lentes de Sebastião Salgado nos oferecem um documento crucial de um fenômeno histórico, evidenciando sua faceta mais essencial: o aspecto humano, frequentemente negligenciado pela historiografia e pelo jornalismo contemporâneo.
“Gênesis”: uma reflexão sobre a gestão dos recursos naturais
Após 8 anos de expedições, percorrendo territórios dentro e fora do Brasil, Sebastião Salgado publicou “Gênesis”, em 2013. Se “Êxodos” revela os efeitos colaterais da globalização nos corpos em movimento, “Gênesis”, por sua vez, volta-se para os espaços ainda preservados, mas igualmente ameaçados por essa mesma ordem global. Neste ensaio, Sebastião Salgado nos apresenta uma celebração fotográfica das paisagens e povos que resistem à devastação ambiental com seus saberes e culturas que resistem ao apagamento. A presença de culturas ancestrais em “Gênesis” revela como o meio ambiente também é um campo de disputa geopolítica, uma vez que temos a natureza como território e os povos originários como atores fundamentais na defesa desses espaços.
Mais uma vez, a obra do fotógrafo é marcada por uma proposta de intervenção social, o que pode ser percebido pela denúncia realizada durante o processo de criação de “Gênesis”, que trouxe à tona a atuação de uma mineradora inglesa que poluía rios que pertenciam à comunidade indígena Zo’é, no Pará. Certamente, o ativismo social de Sebastião Salgado contribuiu para a demarcação da Terra Indígena Zo’é, após decreto assinado pelo presidente Lula em 2009.
“Gold”: a febre do ouro, a exploração do território e das pessoas
A obra publicada em 2019 revela registros realizados na década de 1980, em Serra Pelada, localizada na região da Amazônia paraense. Ao mesmo tempo em que as lentes do fotógrafo mostram a transformação da paisagem trazida pela destruição gerada pela exploração do ouro, denunciam também as condições precárias e violentas às quais estavam submetidos os trabalhadores da região.
Convém ressaltar que Serra Pelada chegou a reunir cerca de 50 mil trabalhadores de diversas regiões do Brasil e do mundo, no que ficou conhecido como um dos maiores garimpos a céu aberto da história. Movidos pela chamada “febre do ouro”, milhares de pessoas alimentaram a esperança do enriquecimento rápido, buscando encontrar um dos metais mais desejados pela humanidade desde o advento do mercantilismo.
Em uma exposição de fotografias tiradas em Serra Pelada, ocorrida no Sesc-SP, Salgado questionou: “O que dizer desse metal amarelo e opaco que leva homens a abandonar seus lares, vender seus pertences e cruzar um continente a fim de arriscar suas vidas, seus corpos e sua sanidade por causa de um sonho?”
Por meio de sua capacidade ímpar, Sebastião Salgado evidencia a condição humana, em um contexto de brutalidade e insalubridade, que combina a presença da esperança em contraste com a crueza e a crueldade da realidade que se impõem sobre estas pessoas. A obra explora sentimentos contraditórios presentes nesse território, como a desilusão e a euforia, surgidos a partir da ausência ou da presença do ouro após intenso e desgastante trabalho.
Gold expõe as entranhas da ideologia capitalista, segundo a qual as pessoas são induzidas a acreditar que a razão de suas existências é a acumulação de riquezas, levando a população expropriada do capital a arriscar a própria vida em nome do sonho de ascensão socioeconômica.
Diante do exposto, a obra de Sebastião Salgado não é apenas um testemunho sensível da condição humana que perpassa diversos eventos históricos, mas uma denúncia visual das engrenagens que sustentam a desigualdade planetária. Suas imagens não confortam, inquietam; não embelezam a tragédia, mas revelam sua origem estrutural. As denúncias e reflexões trazidas por suas fotografias podem constituir um ponto de partida importante para qualquer projeto de transformação da realidade imposta pela hegemonia capitalista.
Salgado não nos entrega certezas, tampouco soluções prontas e fáceis. Ele nos devolve o espelho de um mundo fraturado onde a barbárie tenta se impor, sendo contestada pela resistência. Cabe a nós decidirmos: vamos seguir contemplando as ruínas com olhos vazios, ou enxergar nelas os contornos da necessidade de luta por um outro futuro possível?
Referências
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Livraria Editora Contexto, 2010.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
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Mauricio Alfredo é Mestre em Educação, Professor de Geografia, Geopolítica e Atualidades no Ensino Médio e Superior. Autor de material didático junto à Editora Companhia da Escola.
Diogo Comitre é Professor do IFSP, mestre e doutorando do Programa de História Social da Universidade de São Paulo.