Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

África e América do Sul, olho no olho: “nosso Norte é o Sul”

(Foto: Archivos Uruguayos)

Africanos e sul-americanos multiplicaram os seus encontros nos últimos meses, e isso sem passar por Miami, Washington, Paris ou Bruxelas. “Nosso Norte é o Sul”, parece ser a sua palavra de ordem. Esta frase, desconcertante em primeira leitura, serve como subtítulo so desenho “impressionante” do pintor uruguaio Joaquín Torres García. Datado de 1941, ele propõe uma transformação premonitória dos marcos geográficos e geopolíticos do mundo.

A nova guerra europeia e norte-americana provocou um aumento de adrenalina na África e na América Latina. Velhos ressentimentos vindos das épocas coloniais e das dominações anglo-saxãs posteriores aceleraram seu amadurecimento. Na África Ocidental, a França é cada vez mais contestada, enquanto a Espanha é alvo convergente de disparos vindos dos quatro cantos da América Latina. A ocasião, marcada pela atual guerra na Ucrânia, favoreceria esses gestos de rebeldia e resistência?

Tudo leva a crer que sim, dado o calendário incomum das visitas oficiais cruzadas de africanos e sul-americanos. Dois dos países sul-americanos implicados, Brasil e Colômbia, têm populações de origem africana bastante expressivas. A dimensão cultural destes intercâmbios com o “continente negro” deve ser levada em conta. O terceiro, a Venezuela, tem outra razão: o regime de Caracas tem um lado dissidente e antiocidental que prevalece sobre qualquer outra consideração, cultural ou política.

Dito isto, o Brasil tem uma consequente história diplomática com a África. É verdade que essa história teve lá seus altos e baixos. Essa história foi agora relembrada pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Outras regiões do mundo têm ocupado a atenção desse chefe de Estado, mas, apesar disso, ele não deixou de reafirmar, diretamente ou pela voz do seu Ministro das Relações Exteriores, a ligação africana do Brasil. Vários chefes de Estado e de governo africanos participaram de sua posse em 1 de janeiro de 2023. Os presidentes dos países falantes de português estiveram todos presentes na ocasião, assim como o primeiro-ministro do Mali e da África do Sul. Em Brasília, em 5 de abril, realizou-se a VII reunião da Comissão Mista Paritária com a Angola, um parceiro histórico do Brasil. Foram assinados numerosos acordos econômicos, bem como um compromisso relativo à área de defesa. O Brasil é membro com vários países africanos de várias instituições internacionais.

Em paralelo ao encontro do G7, em Hiroshima em 21 de maio, Lula encontrou-se com o atual Presidente da União Africana, Azali Assoumani, chefe de Estado das Ilhas Comores. Mauro Vieira, ministro das Relações Exteriores, participou em Cabo Verde, em 1 de abril, de um encontro com os países do Atlântico Sul, a ZOPACAS (ou Zona de Paz e de Cooperação do Atlântico Sul). O ministro Brasileiro da Relações Exteriores visitou a Cidade do Cabo, em 1 de junho, para se encontrar com os seus homólogos do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul). Em agosto, Lula vai à África do Sul para participar de uma Cúpula dos BRICS. Vários chefes de Estado africanos têm convidado Lula para visitá-los ao final da cúpula. Já formalizaram o convite o Congo, a Nigéria e São Tomé e Príncipe. Ocupando a presidência rotativa da organização, o Brasil vai receber em 2024 os sul-africanos. A fim de melhor gerir esse ativismo anunciado, o ministro Mauro Vieira organizou, em 25 de maio, um seminário intitulado “Brasil-África: relançar as parcerias”. Este seminário foi realizado na presença do embaixador de Camarões, decano do corpo diplomático africano representado no Brasil.

Nos últimos meses, a Colômbia conta com uma vice-presidente afrodescendente, Francia Marques. Essa comunidade tem sido por muito tempo marginalizada no país, assim como o continente africano, ignorado durante décadas pela Colômbia. Os últimos contatos de alto nível remontam a 1997, quando o Presidente Ernesto Samper visitou o Senegal e a África do Sul. Em um contexto multilateral, a Colômbia esteve representada na Conferência Internacional de Abuja, organizada em 2006, conjuntamente pelo Brasil e pela Nigéria. A África foi reintroduzida na agenda diplomática da Colômbia por instrução do novo chefe de Estado, Gustavo Petro.

Esta iniciativa foi acoplada ao combate local contra a discriminação racial. Em outubro do ano passado, foi elaborado um plano denominado “Estratégia África 2022-2026”. Este documento é de responsabilidade da vice-presidente. É parte integrante do Plano Nacional de Desenvolvimento proposto pelo Presidente, aprovado pelo Congresso. No dia 3 de maio de 2023, no Palácio de San Carlos, sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros, os embaixadores colombianos na África foram informados sobre o Plano e sobre sua vertente africana. Conclusão lógica deste esforço conceitual, a vice-presidente visitou de 10 a 18 de maio de 2023 o Gabão, a África do Sul, o Quênia e a Etiópia. Foram assinados oito acordos de cooperação com a África do Sul, sete com o Quênia e dois com a Etiópia. A África do Sul poderia ser um dos Estados garantidores de um acordo de paz entre Bogotá e a guerrilha ELN. O vice-presidente Paul Mashatile confirmou uma visita de trabalho à Colômbia, assim como o seu homólogo queniano, Rigathi Gachagua. A Colômbia anunciou a abertura de uma embaixada em Addis Abeba, sede da União Africana.

A Venezuela, alvo de sanções transfronteiriças dos Estados Unidos e da União Europeia, exercerá uma atração natural sobre os países africanos que se distanciam da França e do Ocidente? É difícil prever isso hoje. Precursor, talvez, o primeiro-ministro de Burkina Faso, Apollinaire Joachimson Kyelem de Tambela, realizou de 8 a 14 de maio de 2023 uma visita de trabalho a Caracas. “Esta visita”, tal como está escrito em um comunicado oficial burquinense “inscreve-se na dinâmica iniciada pelas autoridades de transição em matéria de diversificação dos parceiros, para lutar contra a insegurança, mas também para dar ao país uma nova dinâmica econômica”. No entanto, é de se notar que esta visita não deveria ser algo a se surpreender, pois o Burkina Faso tem desde 2013 uma cooperação contratual com a Venezuela e outra com Cuba, aberta por Thomas Sankara em 1896, e que resistiu até agora a todos os caprichos políticos, tanto em Ouagadougou quanto em Havana.

Talvez a “moral”, mas com certeza os ensinamentos destas derivas continentais convergentes revelam uma novela com “próximos capítulos”, incontornável, para todos os curiosos dos movimentos tectônicos do mundo.

Texto publicado originalmente em francês, em 15 de junho de 2023, no site Nouveaux Espaces Latinos, com o título original “Afrique, Amérique du sud: les yeux dans les yeux, notre Nord est le Sud”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/112890. Tradução de Edson Santos de Lima e Luzmara Curcino.

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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.