Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Memória e identidade: a construção da cidadania

MuseCom. (Foto: MuseCom)

Diante dos inúmeros desafios enfrentados pelos trabalhadores ligados aos espaços de memória, escrevi este texto baseado em vivências adquiridas na prática cotidiana, ao longo dos anos, das minhas atividades no Museu da Comunicação Hipólito José da Costa (MuseCom), localizado em Porto Alegre (RS). Criado em 10 de setembro de 1974, o museu completou seus 45 anos de atividades culturais junto à sociedade gaúcha. Nesta instituição, trabalho há 27 anos, o que me credencia, de certa forma, a discorrer sobre a relevância de espaços que guardam, preservam e disponibilizam seus acervos, de diferentes tipologias, ao público interessado e, principalmente, aos estudantes que desenvolvem pesquisas acerca dos mais diversos temas.

O produto cultural que resulta das atividades ligadas à pesquisa é representado pela produção de monografias, dissertações, teses e livros, entre outros trabalhos, no campo das ciências humanas e das exatas. Todo o processo técnico que é desenvolvido pelo pesquisador constitui-se num verdadeiro garimpo no passado remoto ou recente. Outro aspecto importante, no campo da pesquisa, é o acesso às fontes históricas (acervos) que, nos espaços de memória, encontram-se inventariadas e preservadas, viabilizando a produção científica das nossas universidades.

A missão do pesquisador

A partir de um olhar crítico, esses profissionais, em sua incansável e responsável tarefa, desenvolvem pesquisas sobre os mais variados temas dentro de um recorte histórico-temporal. Há também as pesquisas com caráter revisionista, visando retificar e elucidar determinados fatos a partir de novos dados coletados pelo pesquisador em seu trabalho de mergulhar no passado para compreender o presente. Essas pesquisas valorizam o papel do profissional e as fontes que lhe servem de base e sustentação em sua atividade. O trabalho do pesquisador só se torna possível graças aos espaços de memória que guardam, preservam e disponibilizam seus acervos ao público.

Os regimes de repressão e a historiografia

No decorrer da história do Brasil, devido a interesses oligárquicos, principalmente quando se implantaram governos ditatoriais, foram criados mecanismos de repressão em relação aos meios de comunicação e a qualquer forma de produção cultural que fosse de encontro aos donos do poder.

O cerceamento da liberdade de expressão resultou, durante o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura civil-militar (1964-1985), na omissão e na invisibilidade de determinados acontecimentos por parte historiografia oficial, assim como na manipulação de fatos importantes de acordo com os interesses do poder. Isso dificulta bastante o papel do pesquisador, fazendo com que seu trabalho assuma um caráter desafiador.

De acordo com os historiadores e a narrativa daqueles que sobreviveram ao terror da tortura, a queima de arquivos e assassinatos, na calada da noite, eram práticas de rotina nos períodos de regimes ditatoriais no Brasil. Essas práticas visavam apagar tudo que, de alguma forma, comprometesse ou colocasse em risco o sistema numa insana “caça às bruxas”, que não deixou nada a dever aos inquisidores do Santo Ofício.

O periódico como fonte de pesquisa

Nos estudos, por exemplo, que nos remetem à ditadura civil-militar (1964-1985), os periódicos (jornais, revistas boletins e almanaques) – principalmente os jornais alternativos (não comprometidos com o poder) – que, em Porto Alegre, encontram-se sob a guarda do MuseCom, a exemplo de O Pasquim (1969-1991), Coojornal (1976-1983) e O Pato Macho (1971), têm sido fontes importantes para os pesquisadores de vários locais do Brasil e até mesmo do exterior, que analisam, por meio desses impressos, sob o crivo do olhar acurado, os fatos que ocorreram naquele período de repressão política e de cerceamento às liberdades individuais.

Um caso clássico de mordaça à liberdade de imprensa foi o que ocorreu em Porto Alegre com jornal A Tribuna Gaúcha (1946-1958). Fundado pelo PCB (RS), sua história nos remete a um verdadeiro faroeste urbano. De acordo com o pesquisador e jornalista João Batista Marçal (1941-2018) no livro A imprensa operária do Rio Grande do Sul (2004), esse periódico foi o mais corajoso e combativo da esquerda gaúcha, despertando a perseguição e a ira dos adversários políticos da época.

No período de 1946 até o início de 1952, quando a redação da Tribuna Gaúcha se localizava na rua da Ladeira (atual General Câmara), ocorreram, em momentos críticos de repressão, prisões, espancamentos, tumultos e até derramamento de sangue. A ordem poderia partir do Tribunal da Justiça, da Guarda Civil ou até mesmo de um delegado enfurecido com o conteúdo do jornal. Com a redação sempre vigiada, a cada edição se estabelecia um confronto. As portas do prédio permaneciam fechadas e, lá dentro, o jornal era rodado enquanto os militantes pensavam numa forma de burlar a vigilância policial para distribuí-lo em locais estratégicos e previamente determinados.

Entre outras formas de tentar romper com o cerco, a mais comum era escolher uma pessoa na redação que, ao sair da sede, iniciava um discurso contra o governo, atraindo a atenção dos repressores e desviando–os do seu foco: a redação. Caso houvesse êxito estratégico, alguns militantes se deslocavam de forma rápida com pacotes de jornais para serem distribuídos na rua da Praia, em pontos onde o jornal já estava sendo esperado.

Jornal O Pasquim. (Foto: Acervo MuseCom)

Jornal Última Hora. (Foto: Acervo MuseCom)

Jornal O Pato Macho. (Foto: Acervo MuseCom)

O jornal que apoiou Jango

Outro caso de perseguição à liberdade de expressão deu-se com a rede do jornal Última Hora, criada pelo jornalista russo-brasileiro Samuel Wainer (1910-1980), abrangendo São Paulo, Pernambuco, Paraná, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

Criado em 1951, no Rio de Janeiro, com o apoio do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), o jornal Última Hora apoiou as reformas sociais e a política trabalhista do governo. Embora tenha circulado depois de 1971 com esse mesmo título, a linha editorial do jornal mudou após ter sido vendido.

O jornal Última Hora (1960-1964) impresso no Rio Grande do Sul foi o único, na capital gaúcha, que apoiou as reformas de base defendidas por João Goulart (1919-1976), indo de encontro ao golpe de 1964 ou, como dizia Leonel de Moura Brizola (1922-2004), à quartelada articulada que contou com o apoio dos Estados Unidos, resultando em 21 anos de ditadura. Com a tomada do poder pelos militares, em 1964, Samuel Wainer deixou o Brasil.

Os jornais A Tribuna Gaúcha e Última Hora foram marcantes na história da imprensa brasileira, sendo fundamental preservar suas coleções, pois representam a resistência à opressão quando a liberdade e os direitos humanos são ameaçados e até mesmo violados de forma arbitrária e despótica.

A historiadora gaúcha que quebrou paradigmas

Dentro das limitações impostas a quem se aventura a descortinar o passado, não poderia deixar de registrar minha homenagem in memoriam à historiadora Sandra Jatahy Pesavento (1946-2009). Nascida em Porto Alegre, ela superou preconceitos acadêmicos em relação a determinados temas que foram soterrados e ignorados, ao longo do tempo, pela historiografia oficial.

Ao escrever inúmeras obras acerca de temáticas até então abordadas sem a devida profundidade ou invisibilizadas devido ao preconceito – a exemplo da história dos becos e bairros negros da capital gaúcha e seus personagens -, Pesavento nos deixou uma valiosa produção historiográfica, na qual a pesquisa nos periódicos que circularam no final do período monárquico e nas primeiras décadas do século XX foi imprescindível, corroborando a importância das fontes primárias preservadas nos espaços de memória, como é o caso do MuseCom, detentor de uma das mais importantes hemerotecas da América Latina.

Segue a transcrição de um registro que denota a experiência dessa notável historiadora e o feeling de quem nos deixou um significativo legado cultural: “As fontes históricas nos auxiliam a compreender esta ‘colcha de retalhos’ que é a trajetória do homem através do tempo” (Sandra Pesavento).

Historiadora Sandra Jathaí Pesavento. (Foto: Divulgação)

O compromisso com a cidadania

Espaços culturais voltados à preservação da memória são importantes no processo de educação, auxiliando o cidadão a compreender a história em suas múltiplas abordagens, seja a partir da sua comunidade ou de seu país, assim como de outra cultura. A memória, representada por meio dos acervos, trata de um valioso patrimônio cultural, constituindo-se em instrumento no processo da construção identitária do cidadão.

Os espaços de memória devem interagir com a comunidade por meio de atividades nas quais a criança, o jovem, o idoso identifiquem-se como parte integrante deles, pois ali se guardam e preservam, por meio de acervos, aspectos da história da sociedade da qual todos fazem parte. Esses locais, além da importante função de guardar um patrimônio, representam nichos voltados à resistência, à produção cultural e à inclusão num país onde a diversidade étnico-racial é o caldeirão no qual se forjou a identidade do povo.

Um novo olhar

A memória pode ser compartilhada por meio de exposições, palestras, visitas guiadas e outras tantas atividades que devem ser norteadas pelo trinômio do conhecimento, do lazer e da criatividade, evitando, dessa forma, as narrativas, na maioria das vezes, longas e enfadonhas, que não conseguem manter a atenção do público presente e nem fazê-lo refletir sobre a importância da memória e o porquê da sua preservação.

Com criatividade e bom conteúdo, a interação entre o profissional e o visitante que se dá nos espaços de memória contribui, de forma substancial, na aquisição e produção do conhecimento ou, no caso das crianças, na formação do futuro cidadão. A ideia, por exemplo, de que o museu é um espaço frio e estagnado no tempo, guardando objetos antigos, é ultrapassada, e esse errôneo conceito deve ser desconstruído e superado.

Oxalá os profissionais que vivenciam as atividades desenvolvidas dentro desse universo composto por museus, memoriais, arquivos e bibliotecas possam atuar de forma a desconstruir esse imaginário perpetuado pela desinformação. Um país sem memória é um povo sem história, o que resulta em total alienação da sua realidade cultural, socioeconômica e política.

BIBLIOGRAFIA

FÉLIX, Loiva Otero. Memória e História : a problemática da pesquisa. Passo Fundo, Ediupf, 1998.
MARÇAL, João Batista. A imprensa operária do Rio Grande do Sul (1873-1972). Porto Alegre. 2004.
MIRANDA, Marcia Eckert; COSTA LEITE, Carlos Roberto Saraiva. Jornais raros do Musecom: 1808-1924. Porto Alegre: Comunicação Impressa, 2008.
SANTOS, Maria Célia Moura. Encontros museológicos: reflexões sobre a museologia, a educação e o museu. Rio de Janeiro: MINC; IPHAN; DEMIU, 2008.
VIGNOL, Ana Letícia. Memórias do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa. Porto Alegre: Ed, Movimento, 2012.

Entrevista
Sérgio Dillenburg: depoimento [nov.2004] à entrevistadora Ana Letícia de Alencastro Vignol. Porto Alegre. Entrevista realizada com o idealizador e primeiro diretor do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa.

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Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é pesquisador e responsável pelo núcleo de pesquisa do MuseCom.