Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Não podemos esquecer de falar das flores

Rio de Janeiro, outubro de 1968. Soldados armados interrompem a caminhada de um estudante, que é preso em flagrante, portando panfletos com trechos de uma música com ‘dizeres contra o governo’, conforme detalha auto lavrado junto à Delegacia de Ordem Política e Social do Estado da Guanabara, recolhido ao Arquivo Nacional. O jovem que atuava como redator de O Mícron, publicação da Agremiação Estudantil da Escola Técnica Celso Suckow da Fonseca, seria denunciado com base no decreto-lei 314, de 1967, instrumento de um regime autoritário estabelecido há 60 anos.

O material considerado subversivo a ponto de configurar um crime contra a segurança nacional continha parte da letra escrita e apresentada por Geraldo Vandré no III Festival Internacional da Canção, promovido e transmitido pela TV Globo, em setembro de 1968. Convertida em uma espécie de hino da juventude, ‘Pra não dizer que não falei das flores’ foi proibida, virando, com a repressão, também um símbolo da censura à liberdade de expressão estabelecida pela ditadura civil-militar brasileira, prática que pode ser compreendida como uma forma de violência.

Instrução produzida pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar), em dezembro de 1968, elenca argumentos para sustentar a proibição da música. Classificado à época como confidencial, o documento, que agora integra o acervo do Arquivo Nacional, define a letra como ‘hábil síntese, na melhor forma estética, de postulados básicos da doutrina marxista’. “A apresentação das ideias pela forma adotada é especialmente eficaz, pois atua por meio do inconsciente das pessoas, levando à lenta aceitação do que se diz nos versos”, pontua o informe. 

A composição, de acordo com posição do Cenimar, foi encarada como um ‘ponto de partida para a aceleração e a ampliação de um processo de dominação pela inteligência, particularmente grave’. “(A música) atinge amplo e variado público e ingressa vitoriosa, para contaminar os espíritos, mesmo dentro das casernas, ferindo de morte o próprio sentido da missão da instituição militar, e lançando dúvidas sobre os ideais maiores que a norteiam”, conceitua a informação difundida para outros setores da organização administrativa estabelecida pela ditadura.

A ameaça foi mensurada pela reação do público que lotou o Maracanãzinho, em setembro de 1968, contestando o resultado do júri, como fica claro em trecho do informe. “O fato da composição ter sido aplaudida durante 10 minutos, por mais de 20 mil pessoas, evidencia o alto grau de ‘politização e conscientização’, em nada desprezível, sobretudo se considerarmos que a música primeira colocada é de autoria de um nome de ampla aceitação popular e que afinal não conseguiu ser representada no fim da sessão”, detalha o documento, fazendo referência às vaias direcionadas a Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, que conquistou o Festival.

O Projeto Memória do Grupo Globo afirma que a edição de 1968 do Festival Internacional da Canção ‘entrou para a história da MPB pela tônica de protesto ao regime militar, tanto nas canções como na reação do público’, destacando que Geraldo Vandré ‘entrou no palco sob gritos do público, inconformado com o resultado’, e que ‘as vaias só foram interrompidas quando o músico começou a entoar a canção, sendo acompanhado por um coro de quase 20 mil vozes’. O conteúdo não faz qualquer referência a pressão ou intervenção da cúpula militar no resultado do Festival, que, na prática, tinha mesmo um caráter comercial. 

O fato é que a plateia não tomou as ruas, iniciando uma revolução imediata, a exemplo dos belgas, que, em agosto de 1830, durante a apresentação da ópera A Muda, de Portici, retratando a rebelião dos napolitanos contra os espanhóis, invadiram o palco do Teatro de la Monnaie, iniciando o processo de ruptura com a Holanda. Amparado pela aceitação da audiência, o caráter revolucionário da composição, identificado pelas Forças Armadas, estava antes de tudo fundamentado em um preconceito histórico, de caráter elitista, que tradicionalmente nega o protagonismo do povo.

Para os militares, os receptores daquela mensagem em forma de música não teriam a capacidade de compreender o contexto histórico, dependendo, portanto, da censura à obra, o que é possível concluir a partir da posição do Cenimar. “Se mesmo dentre as pessoas que possuem formação específica no terreno das ciências humanas há as que encontrem dificuldades em refutar as afirmações do marxismo, não é fácil imaginar o que poderá acontecer com o grande público, desprovido de maior ilustração, que repetirá o que ouve no rádio e na TV, com reduzida capacidade crítica, de resto já tão reduzida pelas características promocionais do Festival da Canção”, define o informe.

Ao criticar a qualidade artística da composição, reduzindo a letra ao conteúdo ideológico, os militares demonstrariam, ainda, preocupações com trechos específicos. Para o Cenimar, ‘quem sabe faz a hora, não espera acontecer’ conceitua o que define como ‘problema da conscientização para o desenlace da fase mais efetiva do movimento revolucionário’. “Constata-se que, na agressão que ora sofre este país, através do emprego de conquistas sofisticadas da moderna psicologia social e da teoria da comunicação de massa, começam a ser visadas aquelas instituições que, por suas caraterísticas especiais, são as únicas capazes de defendê-lo com eficiência”, define o comunicado.

E a proibição da música não foi a única consequência para o compositor. O Ato Institucional número 5 (AI-5), editado em dezembro de 1968, ano em que o movimento estudantil, foco de resistência à ditadura, ganhou força, ampliou a rigidez do regime. Em março de 1969, o chefe de Estado Maior da Armada recebe um pedido de abertura de Inquérito Policial-Militar (IPM) para apurar ‘atividades subversivas e contrarrevolucionárias de vários elementos do meio artístico, entre os quais Geraldo Pedrosa de Araújo Dias (Geraldo Vandré)’. A solicitação também integra o acervo do Arquivo Nacional.

O compositor deixa o país, em exílio, mas segue na mira dos militares. Em novembro de 1970, a agência central do Serviço Nacional de Informações (SNI) recebe relatório da Divisão de Segurança do Ministério das Relações Exteriores, encaminhadas pelo Consulado do Brasil em Paris, ‘a respeito das atividades de Geraldo Vandré na França’. O documento classificado como confidencial destaca que o artista ‘vive modestamente, não participa de orquestras e não dá concertos’. “Ressente-se muito da falta do público brasileiro e aqui não goza de prestígio ou fama”, informa o documento.

O relatório sugere que Geraldo Vandré ‘deve receber direitos autorais do Brasil e vindos de outros países’, como forma de sustento na França, observando que o compositor ‘é muito ligado aos padres contestatórios, brasileiros e estrangeiros, da linha de Dom Helder Câmara’, salientando que ‘não frequenta grupo terrorista ou banido’. Pesava, contra o artista, outra composição de contestação ao regime, mencionada no relatório do Ministério das Relações Exteriores, encaminhado ao SNI em 1970.

O compositor é apontado como autor de uma música reproduzida durante ‘a missa contestatória da Páscoa de 1970, da igreja Saint-Germain-des-Prés (uma das mais antigas de Paris), durante a qual foi entronizado Cristo na cruz, simbolizando o homem brasileiro torturado’. “Depois dessa manifestação, cujos promotores principais foram jovens padres franceses e brasileiros, o senhor Geraldo Vandré não mais apareceu em qualquer outra manifestação”, especifica o relatório, que pode igualmente ser consultado no Arquivo Nacional.  

Ganhando as ruas, em manifestações, e sem execuções nas emissoras de rádios e TV, ‘Pra não dizer que não falei das flores’ foi popularmente batizada de ‘Caminhando’, nomenclatura citada por Caetano Veloso em entrevista concedida em outubro de 1968, ao jornal O Paiz, do Rio de Janeiro. A opinião de um dos líderes do Tropicalismo, movimento de ruptura cultural lançado no final da década de 1960, sobre a canção de Geraldo Vandré, integra uma lista de fichas encaminhadas à Presidência da República, por conta do programa de um Curso de Cultura Brasileira, oferecido pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1970.

Informações sobre Nara Leão, Glauber Rocha, Chico Buarque, Gilberto Gil, José Capinam, Domingos de Oliveira, Edison Carneiro e Helio Jaguaribe integram as mesmas fichas. Em trecho de entrevista destacado pelo documento, Caetano Veloso, questionado sobre a obra de Geraldo Vandré, afirma que ‘não é nem a letra, nem muito menos a melodia, mas sim a reação que causa ao público, a vibração, a identificação dos mesmos anseios de liberdade, que a situação política e social tende a acentuar, que a torna bonita’.

O hino da juventude só seria comercialmente relançado em 1979, abrindo álbum de Geraldo Vandré, produzido pela RGE. A gravadora optou pela utilização da versão apresentada no show do Maracanãzinho, trazendo na capa um selo destacando que a canção havia sido proibida em 1968. Cópias do disco com a canção ainda censurada seriam apreendidas em novembro. O ano em que a Lei da Anistia entrou em vigor marcou, entretanto, um novo momento da MPB, com os lançamentos de Não Chore Mais, de Gilberto Gil, Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho, e Geni e o Zepelim, de Chico Buarque. 

Cantoras e compositoras também ganharam espaço, em 1979, com destaque para discos lançados por Alcione, Rita Lee, Angela Ro Ro, Baby Consuelo, Beth Carvalho, Cátia de França, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Elba Ramalho, Elis Regina, Elza Soares, Fafá de Belém, Gal Costa, Gretchen, Joanna, Maria Bethânia, Nana Caymmi, Miúcha, Simone e Marina Lima. No mesmo ano, porém, Amado Batista lançaria o álbum ‘O amor não é só de rosas’, cuja faixa de abertura (O Julgamento) retrata a história de um homem que mata a companheira ao flagrá-la com outro parceiro; uma demonstração do quanto ainda era preciso avançar para alcançar uma mentalidade alinhada aos preceitos básicos dos Direitos Humanos, tão sufocados naquele período histórico.

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Sidimar Rostan é repórter, graduado em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, pela Urcamp, com especialização em Comunicação e Política.