“O sapo não pula por boniteza, mas por precisão.”(Dito popular)
Não existe redação de jornal ou revista em que não haja jornalistas que lá chegaram porque, tendo “jeito para escrever”, em algum momento sonharam tornar-se escritores. A maioria aos poucos mudou de rumo e, abandonando as veleidades literárias, concentrou-se na atividade jornalística. Outros passaram a viver uma dupla militância da palavra, tratando de ganhar a vida nas redações sem desativar o sonho de produzir textos mais duráveis.
Em princípio, não existe incompatibilidade entre uma coisa e outra, mas o parentesco entre o jornalismo e a literatura pode induzir a equívocos que resultam desastrosos não só para os dois gêneros como para autores e leitores.
Hoje os escritores nas redações são menos numerosos do que foram no passado. Houve tempo em que a maioria deles tinha dois caminhos para ganhar a vida: o serviço público e o jornalismo. Entre as figuras graúdas, raros – Guimarães Rosa, Rubem Fonseca e uns poucos mais – escaparam de uma coisa ou de outra.
Num de seus raros efeitos benéficos, e ainda que por motivações nada nobres, o golpe militar de 1964 reduziu o vínculo promíscuo que havia entre o intelectual e o poder. Ao secar essa fonte, a sobrevivência material do escritor, em muitíssimos casos, ficou sendo o jornalismo. Basta olhar a quantidade de ficcionistas que, depois de 1964, se refugiaram nas redações: Ivan Angelo, Ignacio de Loyola Brandão, Caio Fernando Abreu, Bernardo Carvalho, Luiz Ruffato, Carlos Herculano Lopes…
Hoje como no passado, a presença de bons ficcionistas nas redações costuma significar um enriquecimento para a atividade jornalística, na medida em que eles trazem uma bagagem adicional de criatividade e de imaginação, de outras leituras e de outros interesses. Contudo, especialmente para os menos vividos, há sempre o risco de confundir os canais, tentando fazer literatura no jornal – ou jornalismo na literatura.
“Discurso claro e coerente”
Fique bem claro: utilizando o mesmo instrumento, a palavra, são canais paralelos, porém muito diferentes, antípodas até, e tomar um pelo outro fatalmente leva ao desastre. Quando se tenta fazer a literatura passar pelo canal do jornalismo, ou vice-versa, cria-se um problema, digamos, hidráulico, semelhante ao de quem tentasse fazer a água passar pelo cano do gás.
Uma ficção excessivamente contaminada pelo jornalismo acaba sendo uma ficção rasteira, exangue, anêmica, de um realismo barato. A literatura brasileira de alguns anos atrás – não por acaso, coincidindo com a censura do regime militar – deu uma guinada feia para o realismo e para a linguagem jornalística. Resultado: poucos anos depois, não sobrou nada dessa onda – felizmente.
Também do outro lado andou havendo exageros. O Jornal da Tarde, de São Paulo, foi no começo – a segunda metade dos anos 1960, entrando pelos 70 – uma luminosa vanguarda na imprensa brasileira, com mil novidades no texto e no visual. Ao mesmo tempo, porém, muitas vezes extrapolou no uso de recursos da literatura – quase sempre em prejuízo do jornalismo (e da literatura). O Jornal da Tarde dessa época chegou a pôr a informação abaixo da preocupação estilística e, nisso, perpetrou absurdos como dar uma página inteira sobre um jogo de futebol sem informar o resultado…
Pode ser útil esta distinção entre a prosa literária e a jornalística: na literatura, a palavra não é meramente um meio de dizer alguma coisa, mas um fim em si. O modo como se conta uma coisa pode (deve, acham muitos) ser tão ou mais interessante que essa coisa. Não dá para imaginar Grande Sertão: Veredas contado de outra forma, sem que o romance de Guimarães Rosa se transforme numa história de moça travestida de vaqueiro.
Há outra distinção que ajuda a prevenir equívocos. O jornalista escreve porque sabe – leu, pesquisou, foi lá, viu, entrevistou, e só depois disso sentou-se para escrever; ao passo que o escritor, como dizia Fernando Sabino, escreve não porque saiba, mas para ficar sabendo. De fato, para o escritor de ficção, por mais que ele tenha se preparado, armado um esquema, estruturado o texto, escrever é de certa forma encetar um voo cego, é partir sem saber exatamente aonde se vai chegar.
Não dá, então, para confundir os gêneros. Vale a pena ouvir o que diz a respeito alguém que é ficcionista e foi também, por décadas, jornalista, o mineiro Ivan Angelo:
“A diferença básica entre as linguagens jornalística e literária é o para quê, a função, que determina a atitude de quem escreve. A virtude principal do jornalista é a objetividade, a do ficcionista é a subjetividade. O jornalista tem um compromisso com o discurso corrente, claro e coerente; o romancista tem compromisso com a invenção, a transformação e a renovação do discurso. Uma reportagem é limitada pela linguagem que o dono do jornal quer; a linguagem de um romance não tem limites.”
Perfil de Sinatra
Em meados do século XIX, o jornalismo era forte e assumidamente contaminado pela literatura. A notícia era tratada com mil firulas literárias. A certa altura, os editores se deram conta de que, se o jornal caísse de preço, mais gente iria lê-lo. O custo do aumento da tiragem seria compensado pela entrada de anúncios. Foi nesse momento que a imprensa e a publicidade se descobriram e se casaram – para sempre.
Para ser lido por mais gente, e não apenas pelos letrados, o jornal teve que mudar o seu conteúdo. Passou a publicar mais notícias, sobre assuntos mais variados, e menos opinião e textos literários. Como precisava atrair compradores, começou a incorporar o sensacionalismo, em doses maiores ou menores. Também para chegar a mais gente, o jornal perdeu em profundidade. Como a água que se derrama, a informação se espraiou, ficou mais horizontal, menos vertical – menos profunda.
O conteúdo dos jornais começou a perder, ainda, em subjetividade, e a perseguir a objetividade, num estilo cada vez mais realista – coincidindo, aliás, com a maré do realismo que começava a imperar na literatura naquele momento, final de século XIX. Toda realidade que não fosse fácil e imediatamente verificável passou a não interessar muito à imprensa. Passou a valer mais o fato puro e simples, o fait divers, o incêndio, o crime, do que alguma coisa abstrata que envolvesse especulação, que exigisse muito dos miolos do comprador do jornal. Assim, uma série de coisas da vida real, do mundo real, passou a não interessar à imprensa, a existir à margem dela.
O modo de ver, o olhar jornalístico passou por uma simplificação, para alcançar mais gente e para não inquietar essa gente ao ponto de que ela pudesse desistir de comprar o jornal. Caminhou-se para uma simplificação grosseira na qual os fatos, as coisas e as pessoas necessariamente perderam as nuances, os meios-tons. Passou a imperar o maniqueísmo do bom e do mau, do belo e do feio. Tudo, até mesmo as emoções, tornou-se mais ou menos estereotipado.
A imprensa passou a buscar o que o professor americano Paul Many, do Universidade de Toledo, Ohio, chamou de “consenso da realidade”.
Essa uniformização, esse achatamento da realidade, esse esforço para enfiar a realidade, as coisas e as pessoas dentro de moldes levou também, frequentemente, a uma atitude cínica. Isso é feito em nome da objetividade, mas a verdadeira explicação pode estar em outra parte – seja na preguiça de apurar direito, seja na incapacidade de ver uma realidade que não seja chapada, unidimensional, seja, ainda, na incapacidade do jornalista de transar as próprias emoções. Em larga medida, é esse o panorama que hoje prevalece na imprensa.
Foi como reação a essa tendência, a essa obsessão da objetividade, que na metade dos anos 1960 surgiu o chamado New Journalism, que deu fama a profissionais como Joseph Mitchell, John Hersey, Gay Talese, Tom Wolfe, Truman Capote e Norman Mailer – os dois primeiros, na verdade, pioneiros, pois abriram a picada nos anos 1940, com a publicação de O professor Gaivota e Hiroshima, respectivamente. No Brasil, o gênero teria como expoentes, entre outros, Antonio Callado (Esqueleto na Lagoa Verde), Joel Silveira (A milésima segunda noite da Avenida Paulista e A feijoada que derrubou o governo) e Zuenir Ventura (Chico Mendes – Crime e castigo). Estes quatro livros, aliás, viriam a integrar o precioso selo Jornalismo Literário, criado pela Companhia das Letras com a ambição de reunir o que de melhor haja nesse terreno em todo o mundo.
O New Journalism procurou devolver ao jornalismo, aperfeiçoando-as, algumas ferramentas da literatura, como o uso de diálogos, a descrição de cenas e ambientes, e, sobretudo, quebrando a assepsia, a secura, a pobreza de um texto raso, de uma visão rasa da realidade. Basta não esquecer que as palavras saber e sabor, tendo a mesma raiz, não precisam andar separadas.
É um tipo de jornalismo que valoriza mais a observação do que as palavras. Um exemplo clássico é o célebre perfil “Frank Sinatra está resfriado”,escrito por Talese para a revista Esquire no longínquo ano de 1965 mas ainda hoje lido com o frescor de coisa nova, na coletânea Fama e anonimato. Talese escreveu essa estupenda peça jornalística sem entrevistar Frank Sinatra, que se recusou a recebê-lo. Anos depois, num artigo sobre o seu making of do perfil, avaliou: “Ganhei mais observando-o e ouvindo-o à distância e notando as reações das pessoas que o rodeavam do que se houvesse conseguido sentar-me a seu lado e conversar com ele.”
Salvar o pescoço
O nome, New Journalism, caiu em desuso. Os críticos da nova corrente diziam que ele não era new, uma vez que o jornalismo de um século atrás já usava recursos literários, como também não era journalism. Mas a tendência prosperou, sob uma quantidade de rótulos. O já citado Paul Many, que não se perca pelo sobrenome, listou nada menos de 21 nomes usados para designar o jornalismo que, em graus variados, utiliza recursos literários.
A designação mais usada atualmente é literary journalism, difícil de traduzir para o português – pois “jornalismo literário”, entre nós, é um jornalismo sobre literatura. Também aqui não faltam críticos: há quem diga que literary journalism é um oximoro, figura de linguagem que consiste em juntar coisas que se contradizem, como “silêncio eloquente”. Na verdade, não é. O literary journalism é um jornalismo que usa técnicas literárias, só isso. Técnicas que o papa do movimento, Tom Wolfe, enumerou numa entrevista a Veja: “A construção de cenas, a inserção de diálogos quando possível, o uso de pontos de vista diferentes e o registro de detalhes que denotam a camada social a que pertencem as pessoas focalizadas pela reportagem: o que vestem, o modo como falam etc.”
O que diz Tom Wolfe pode ser reforçado pela frase famosa do arquiteto teuto-americano Ludwig Mies van der Rohe: “Deus está nos detalhes.”
Compreensivelmente, o literary journalism é mais praticado nas revistas do que nos jornais, já que o ritmo do jornal diário não favorece o texto mais caprichado. Faz sentido, mas a pauleira das redações de jornais costuma ser também uma desculpa preguiçosa para não se fazer nada além do ramerrão jornalístico.
Excessos em nome do literary journalism costumam ser cometidos. Às vezes o jornalista sai do trilho da realidade, imagina, inventa, ajeita, “melhora”, dá um empurrãozinho – o que certamente não é privilégio do literary journalism. Esse tipo de fraude, de falsificação acontece também, e muito, no journalism que não é literary.
Não é preciso enfeitar, forçar a mão, forçar a barra. A realidade já tem tudo aquilo de que um jornalista precisa. Para usar o verso de João Cabral: não é preciso perfumar a flor. A pauta pode e deve ter imaginação, mas a matéria tem que andar no trilho da realidade. Até porque nada se salva no texto apenas – não dá para fazer uma bacalhoada só com água e sal.
Não se trata de defender o literary journalism como escola a que devamos nos filiar, mas de ver nele possibilidades muito maiores de conseguir essa coisa difícil que é seduzir o leitor.
Sim, seduzir – e não para fazer bonito. Se o sapo pula, diz o ditado, não é por boniteza, mas por precisão, para que a cobra não o devore. Numa banca de jornais há centenas de publicações, com dezenas de matérias cada uma, e se alguém chegou à minha matéria, entre tantas outras disponíveis, o mínimo que devo fazer é me ajoelhar aos pés desse leitor – e tratar de mantê-lo preso até a última linha do texto.
Seria bom que os jornalistas, mesmo os que não têm religião, tomassem Sherazade para sua padroeira. Ela mesma, a moça que ao longo de mil e uma noites entreteve o sultão Chariar não apenas com suas histórias mas também – ou sobretudo, desconfio – com a maneira sedutora como as contava. O objetivo não era fazer bonito, mas salvar o seu pescoço, ao contrário de tantas infelizes que a precederam aos pés do sultão. Não tenhamos dúvida: se o leitor abandona o que escrevi, significa que fui decapitado. De forma que, se você chegou até aqui, tenho que lhe agradecer – e renovar minha fé nos poderes de Santa Sherazade…
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[Humberto Werneck é jornalista, mineiro de Belo Horizonte, onde nasceu em 1945. É autor de O santo sujo: a vida de Jayme Ovalle (Cosac Naify, 2008), entre outros]