Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Mulher no comando

Le Monde, o diário de mais prestígio na França, já tem diretor. Ou melhor, diretora, a primeira na história do jornal. Na sexta-feira, foi escolhida uma mulher de 46 anos, 17 dos quais no Le Monde; tímida, elegante e com caráter, além de fama de boa profissional. Seu nome é Natalie Nougayrède.

O jornal estava acéfalo desde a morte súbita do diretor anterior, Erik Izraelewicz, no fim de novembro. Inscrita como candidata de última hora, na primeira entrevista Natalie causou forte impressão. Depois da quarta entrevista e duas semanas de dúvidas, foi selecionada pelos controladores por cima dos outros três candidatos com mais experiência e passou pelo crivo da sociedade de redatores, na qual tinha que obter, pelo menos, 60% dos votos. Conseguiu 80%. Ela reconheceu que “meu inimigo pessoal é a comunicação”. Escolheu para ocupar o segundo lugar o atual diretor de Libération, Vincent Giret, bom administrador, de fácil relacionamento e conhecedor da mídia digital. No dia 6, seu nome foi ao conselho de supervisão, uma formalidade.

Filha do engenheiro de uma multinacional, Natalie morou em Londres, onde aprendeu inglês com quatro anos, e no Canadá, onde estudou russo. Quis ser médica, mas optou pelo jornalismo para poder viajar e porque assim tinha que entrevistar pessoas e “superar uma parte da timidez”, como disse. Cobriu o conflito dos Bálcãs para o Libération. Entrou no Le Monde em 1996, foi correspondente em Moscou e, desde 2005, correspondente diplomática. Suas análises nem sempre agradaram ao poder; chegou a ser expulsa de um encontro no Quai d’Orsay, o Ministério das Relações Exteriores.

“Objetividade não existe; honestidade, sim”

A tarefa da nova diretora não será fácil. Ela terá que recuperar a circulação do jornal e desenvolver a versão digital. Considerado no passado o principal formador de opinião e da agenda de debates, alimento diário dos intelectuais e leitura indispensável para a elite francesa, Le Monde enfrentou problemas econômicos e uma crise de credibilidade. Ao ser sabatinada pela redação, Natalie disse que seu objetivo será manter a qualidade e a independência do jornal.

Le Monde foi fundado em dezembro de 1944, pouco tempo depois de Paris ser libertada da ocupação alemã, por decisão do general Charles de Gaulle. Ele queria que a França tivesse um grande jornal, respeitado internacionalmente, como The Times, de Londres. Para a direção, foi escolhido Hubert Beuve-Méry, um cristão austero, de hábitos ascéticos, solitário e receoso do poder do dinheiro; “gracioso como um cacto”. De Gaulle deu uma única orientação: Le Monde deveria ser o instrumento da consciência nacional. Realmente, Beuve-Méry sempre considerou o jornal como um tipo de serviço de interesse público, um órgão com responsabilidade pública e com obrigações para com a França. Suas funções incluíam a direção da redação e de toda a empresa.

Com uma gestão extremamente conservadora, evitou fazer dívidas, preferindo o autofinanciamento. “Vocês não verão atrás de mim nem banco, nem igreja, nem partido político”, dizia. Para equilibrar as contas, pagava salários bem inferiores aos do mercado, o que não impediu que atraísse uma elite dos melhores jornalistas da França. A orientação de Beuve-Méry era clara: “Dizer a verdade, custe o que custar. Sobretudo, se custar.” Partia do princípio de que “a objetividade não existe, mas a honestidade, sim”. A informação tinha que ser honesta e completa. Orientava os jornalistas a não aceitarem convites para jantar com pessoas que poderiam pedir algo em troca, mas dizia que podiam ser aceitos convites do governo para almoçar, “com a condição de cuspir no prato”.

Déficit crônico

Em pouco tempo, Le Monde era o jornal mais respeitado do país. Segundo o jornalista Jean Lacouture, Beuve-Méry, “à força de honestidade, teimosia, firmeza e respeito pela coisa escrita, criou o melhor jornal da Europa – eu diria, o melhor jornal anglo-saxão da Europa”. Ainda segundo Lacouture, o jornal não era objetivo, mas era editado para que as pessoas pudessem ter uma opinião própria. Era criticado por ter pouco senso de humor e por levar-se demasiado a sério. Era vespertino, característica que conserva até hoje.

Durante a Guerra Fria, Le Monde não foi um admirador da União Soviética – era muito criticado pelo Partido Comunista Francês –, mas não adotou um anticomunismo primário. Um famoso colaborador, Étienne Gilson, professor do Collège de France, escreveu uma série de artigos argumentando que a França deveria ser um país neutro, equidistante dos Estados Unidos e da União Soviética. O jornal também publicou opiniões diferentes, defendendo a Aliança Atlântica, mas os artigos a favor do neutralismo e um visível distanciamento em relação aos Estados Unidos provocaram uma comoção dentro da França e dentro do Le Monde. Uma parte da equipe e vários colaboradores saíram, assim como dois dos três fundadores. A pressão foi grande e Beuve-Méry pediu demissão em 1951. A redação, porém, disse que não aceitaria outra pessoa no cargo. Os leitores pediram seu retorno. Depois de manobras das quais De Gaulle participou, Beuve-Méry voltou e houve uma mudança na estrutura da empresa. Os empregados e o diretor ficaram com a maioria do capital; a redação passou a indicar o diretor. Na solução estava o germe de problemas futuros.

Para combater Le Monde, foram lançados diversos jornais, com farto financiamento, todos eles de vida efêmera. A circulação aumentou e, pagas as dívidas do lançamento, conseguiu renovar o parque gráfico. De 117 mil exemplares em 1955 passou a 355 mil em 1969.

Beuve-Méry manteve um relacionamento difícil com De Gaulle. Ambos eram muito parecidos. Solitários, ciosos de sua autoridade, pessimistas, desprezavam os bens materiais e tinham uma visão da França, além do gosto pelo sarcasmo. Le Monde criticou De Gaulle, às vezes de maneira áspera. Numa recepção, Beuve-Méry pediu-lhe um encontro. “Para quê? O senhor conhece minhas ideias e eu as suas.” Estava se afastando, de repente voltou-se para Beuve-Méry e lhe disse que era como Mefisto; repetiu, num alemão perfeito, as palavras que Mefisto dirige a Fausto na obra de Goethe: “Ich bin der Geist, der stets verneint” (Eu sou o espírito que sempre nega). Ao que ele respondeu: “Não sempre, meu general, o senhor sabe que nem sempre disse ‘não’.” Segundo contemporâneos, De Gaulle teria dito que Beuve-Méry nunca o perdoara por ter-lhe dado Le Monde durante a Libertação; outros afirmaram que De Gaulle não perdoava em Beuve-Méry seu gosto pela mesura, seu desprezo pelo rocambolesco.

Depois de 25 anos, em 1969, ele deixou a direção, preocupado com o rápido crescimento de Le Monde. Fez uma advertência profética: “Desde a fundação do jornal, o dinheiro espera pacientemente ao pé da escada, esperando para entrar na sala do diretor. É paciente porque está convencido de que acabará tendo a última palavra.”

Seu sucessor, Jacques Fauvet, sem a autoridade moral do antecessor, teve que enfrentar a sociedade dos redatores e a resistência dos chefes de seção. Mas a circulação chegou a 459 mil, seu pico, em 1979. Nadava em dinheiro e esquecera a austeridade do passado. Pagava os melhores salários, a redação inchou. Chegou a ter 42 secretárias e 30 contínuos. Apesar de extraordinário aumento da receita, o jornal foi deficitário em 1977 e nos anos seguintes. Ainda assim, os salários continuaram aumentando, férias de oito semanas, redução da jornada de trabalho. Quando, para aumentar a receita, a gráfica contratou a impressão do France Dimanche, a redação se opôs, por não gostar de seu tipo de jornalismo, mais popular.

Informações erradas

O jornal embarcou em aventuras esquerdizantes. Mostrou simpatia pelo Khmer Vermelho, pelo maoísmo, pelos terroristas da Fração do Exército Vermelho na Alemanha, por um terceiro-mundismo indefinido. Depois da Revolução dos Cravos, em Portugal, justificou a censura do Partido Comunista ao jornal socialista A República e a ocupação de suas instalações, com o argumento de que o país não estava preparado para uma liberdade não vigiada.

Quando, em 1980, teve que escolher um novo diretor, a redação ficou dividida em grupos antagônicos. Claude Julien, considerado “antiamericano” e de esquerda, foi indicado com maioria apertada. Não conseguiu assumir. Fauvet lhe tirou seu apoio e a redação, com receio de seus planos de austeridade, retirou a indicação. A luta crua pelo poder despertou ódios e rivalidades que se renovavam e aprofundavam. Dificilmente, a melhor situação para enfrentar os problemas financeiros e o crescente endividamento.

O diretor seguinte foi André Laurens, um moderado que deu tranquilidade à redação, mas não terminou o mandato; sua proposta de cortar despesas e vender ativos não foi aprovada. O jornal continuava influente, mas enfraquecido e perdendo prestígio. O veterano André Fontaine, eterno candidato ao cargo, foi eleito por unanimidade. Procurou recursos externos e vendeu a tradicional sede da Rue des Italiens, mas não enfrentou os problemas com o rigor necessário e endividou a empresa ao comprar um enorme parque gráfico, muito maior do que as necessidades do jornal. Seu sucessor, Jacques Lesournes, não era jornalista. Professor de Economia, não conseguiu se impor a uma redação dividida. Saiu dois anos antes do fim do mandato.

Foi substituído por Jean-Marie Colombani, líder de um grupo de jornalistas que ajudara a derrubar os diretores anteriores. Fez da empresa uma sociedade anônima e conseguiu novos sócios. Afirma-se, talvez com razão, que evitou a falência de Le Monde. Mudou a fórmula da redação. Em lugar de explicar, analisar e mostrar o contexto de uma informação, a prioridade foram os “furos de reportagem”; a notícia exclusiva a qualquer custo, com um texto contundente, dramatizando os fatos. Os títulos eram agressivos e opinativos, frequentemente triviais. O jornal deu várias notícias exclusivas, com grande repercussão, e um excessivo número de notícias erradas, de escândalos que nunca aconteceram. Reduziu a cobertura internacional. No curto prazo, a circulação aumentou.

Colombani quis transformar Le Monde num pequeno conglomerado de comunicação. Comprou jornais e revistas e tentou, sem conseguir, abrir o capital da empresa na bolsa. Ao crescer, a empresa assumiu dívidas em excesso. Para contornar o problema, a saída de Colombani foi crescer e endividar-se. Entraram novos acionistas para suavizar a situação.

O jornal continuava sendo o melhor da França, mas sua imagem ficou seriamente afetada com o lançamento do livro La Face Cachée du Monde [ver, neste Observatório, “A face oculta do Le Monde“ e “Jornal responde a críticas do livro“]. Seus autores reconheceram que a aura de Le Monde continuava inigualada e que o noticiário da televisão se fazia com o Le Monde aberto sobre os joelhos. Admitiram também a falta de equilíbrio ao dizer que se concentrariam nos aspectos negativos. O livro, em tom panfletário, inclui várias informações erradas e observações ridículas, como a afirmação de que Le Monde é antipatriótico e antifrancês e que o chefe da redação, ex-trotskista, trabalhava para a CIA. Criticaram o jornal por defender os direitos humanos e uma maior abertura da economia e por escrever sobre o mundo dos negócios. Os princípios éticos foram ridicularizados: “Quem recusa uma viagem?” “Quem deixa de aproveitar-se de sua função para obter vantagens?” “Quem declara todos seus rendimentos?”, perguntaram. Segundo o livro, as normas do jornal fazem dele um bunker de “monges trapistas”.

“Bombeiros pirômanos”

Mas o livro tinha outras críticas, mais sérias, que não foram respondidas. Disse que Colombani tinha elevados rendimentos de fontes até então confidenciais. Continuava recebendo de um programa de TV que já saíra do ar, dobrou seu próprio salário e cobrava do jornal suas despesas pessoais. O livro menciona acertos políticos com Édouard Balladur e Nicolas Sarkozy. Le Monde se desgastara no começo dos anos 1980, ao dar apoio pouco crítico ao presidente François Mitterrand, sacrificando a isenção, o que lhe custou perda de prestígio e de dezenas de milhares de leitores. Colombani, em sentido contrário, passou a combater Mitterrand de maneira também acrítica. A redação, preocupada com as informações, pediu respostas concretas, que não recebeu. Várias pessoas saíram.

A circulação estava em declínio e as dívidas em aumento. Foram tentadas medidas cosméticas, como a mudança da primeira página, sem o retorno esperado. Seu principal concorrente, Le Figaro o ultrapassou em circulação. Apesar de endividado, Colombani quis tornar Le Monde a cabeça de um dos maiores grupos de mídia da França, comprando uma rede de jornais. Aparentemente, fora esquecida a orientação deixada por Beuve-Méry, de que “os meios de viver não podem prevalecer sobre a razão de viver, que é a independência”.

Em maio de 2007, venceu o segundo mandato de Colombani. Foi candidato único para um terceiro. Recebeu apoio dos acionistas externos e dos empregados administrativos. Para garantir o apoio da redação, fez uma advertência ameaçadora, ao dizer que vetar seu nome seria um ato de ruptura, que não haveria ruptura sem crise de sucessão e de poder, e que seria um golpe na imagem do jornal, de consequências imprevisíveis. Em lugar dos 60% de votos necessários, recebeu menos de 50%; os jornalistas perderam a confiança em quem dirigira o jornal e a empresa durante 13 anos. Éric Fottorino foi eleito diretor e presidente do conselho. Demitiu-se, junto com a cúpula administrativa, porque a redação não aprovou o plano financeiro de austeridade; ele acusou a sociedade de redatores de brincar de “bombeiros pirômanos”. No entanto, enquanto os outros diretores mantiveram o pedido de demissão, ele voltou atrás; disse que não queria piorar a crise.

Os acionistas e a sociedade de redatores

Mas a crise piorou. Fottorino teve que tomar decisões drásticas, como vender ativos para fazer caixa e cortar despesas para reduzir o déficit. Quando, em 2008, anunciou a demissão de 130 pessoas, foi decretada a primeira greve do jornal em mais de 60 anos. Em meados de 2010, a situação chegou ao ponto de que, para sobreviver, foi preciso procurar apressadamente um comprador. Apareceram vários candidatos, entre eles El País, de Madri, e a revista Le Nouvel Observateur. A redação preferiu, por quase 90% dos votos, vender a três homens de empresa, Matthieu Pigasse, Xavier Niel e Pierre Bergé, conhecidos como PNB pela sigla dos sobrenomes. Eles se comprometeram a colocar em torno de € 100 milhões. Ficaram com dois terços do capital. A redação cedia o controle acionário, mas manteve uma minoria de ações de bloqueio e a promessa de independência editorial. Fottorino, o diretor, disse que ficara decepcionado e fora traído. Foi demitido.

Em seu lugar entrou, em fevereiro de 2011, Erik Israelewicz, antigo jornalista do Le Monde e ex-diretor dos diários econômicos Les Echos e La Tribune. Ele agilizou a edição digital e conseguiu deter, momentaneamente, o declínio da circulação, que de 407 mil exemplares, em 2002, caíra para 319 mil em 2010. No ano seguinte, aumentou para 325 mil. Mas teve que enfrentar as reclamações dos novos acionistas e da sociedade de redatores.

Quando, em 2011, o jornal publicou, num suplemento sobre os 30 anos da ascensão ao poder de François Mitterrand, o primeiro presidente socialista, um artigo extremamente crítico do historiador François Cusset, o acionista Pierre Bergé, amigo do falecido ex-presidente, ficou irritado. Numa carta extremamente dura a Izraelewicz, disse estar em profundo desacordo com o artigo e que lamentava “ter embarcado nesta aventura. Pagar sem ter poderes é uma fórmula manhosa sobre a qual terei que refletir”. Acrescentou que, “contrariamente ao que eu gostaria e eles pretendem, os jornalistas do Le Monde não são livres, mas prisioneiros de suas ideologias, de seus acertos de contas e de sua má-fé”. O artigo, segundo ele, era “imundo”, digno de um aventureiro de extrema direita, e nunca deveria ter sido publicado. A sociedade de redatores, por seu lado, reclamou do “tratamento brutal” dado às equipes, da linha editorial indefinida, de decisões opacas. Poucos dias depois, Izraelewicz morreu.

Natalie Nougayrède terá que cuidar da qualidade e da independência do jornal, de uma circulação que caiu para 314 mil cópias em 2012, de dar impulso à versão digital. Além de ficar atenta ao humor dos acionistas e às manifestações da sociedade de redatores, que se encarregou de tornar mais difícil a vida dos diretores nos últimos 40 anos.

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Matías M. Molina é autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, em segunda edição