Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Desafios da imprensa local

Os editores da Revista de Jornalismo ESPM me convidaram a escrever um artigo sobre as dificuldades, do ponto de vista dos negócios, para o estabelecimento de veículos jornalísticos de boa qualidade e economicamente viáveis nos mercados do interior do Brasil. Depois de atuar em empresas de mídia por 26 anos, quatro deles na gestão de um grupo de mídia regional, tenho uma ideia bem clara de quais são esses entraves e algumas sugestões de como tentar superá-los.

Primeiro, é importante definir de que interior estamos falando. São cidades de médio e pequeno porte espalhadas pelos estados brasileiros, com menos de 50 mil habitantes e localizadas principalmente em regiões não muito ricas. Portanto, não me refiro a cidades médias próximas a grandes centros urbanos, como São Paulo, e outros municípios das regiões Sul e Sudeste, que apresentam boa renda per capita e bons padrões de educação. Estamos falando do “interiorzão” do Brasil mesmo.

Feita essa distinção, a resposta mais imediata e abrangente para a dificuldade em questão é a falta de “massa crítica” em cidades desse porte, para que possam sustentar um veículo noticioso que tenha boa cobertura jornalística da cidade ou da microrregião e, ao mesmo tempo, seja economicamente viável – portanto, pratique um jornalismo independente e de qualidade.

Nessa discussão, existem dois vetores que andam em sentidos opostos. Um deles é o interesse do público. Quanto mais locais forem a informação, a notícia e a prestação de serviços, maior seu interesse. O cidadão quer saber dos fatos da comunidade que influenciam a sua vida. O que o prefeito fez, o que a Câmara Municipal aprovou, quem ganhou o campeonato interescolar, os assaltos que indignaram a população, um crime, quem saiu e quem chegou à cidade; enfim, os acontecimentos que o cercam. Esses assuntos serão pauta das conversas dos botecos, dos senhores que ficam proseando nos bancos das praças e das senhoras que sentam ao final da tarde em cadeiras nas calçadas em frente às casas. E o morador quer ter acesso a tudo isso, obviamente, acompanhado de análise ou de um comentário feito, de preferência, por um camarada respeitado de sua comunidade.

No entanto, quanto mais local for essa informação, menos audiência ela vai captar. E quanto menor a audiência, mais baixo será o valor que o anunciante estará disposto a pagar por uma inserção publicitária no veículo. Pode-se até argumentar que um anúncio, nesse caso, atingiria diretamente e com precisão o target que se deseja. Sim, é verdade, mas quem mira algumas centenas ou poucos milhares de pessoas em uma comunidade é o pequeno varejo e este, até pelo alcance reduzido de sua mensagem, pode pagar muito pouco.

Explicado esse antagonismo, vamos para o segundo ponto, que é o poder aquisitivo. Por quê? Porque poderíamos levar notícias e mensagens publicitárias para alguns poucos milhares de pessoas e mesmo assim termos viabilidade financeira. Mas, para que isso aconteça, esse público deve ter um bom poder aquisitivo. É o que ocorre na Europa e nos Estados Unidos. Uma pequena comunidade tem um alto poder de compra, capaz de manter um varejo muito ativo, com lojas grandes, como um hipermercado Walmart. Essa rede, por sinal, nasceu com a estratégia de abrir lojas apenas em cidades americanas com menos de 50 mil habitantes e assim se tornou a maior rede varejista do mundo. Uma comunidade desse porte, onde todas as famílias têm dois carros e os trocam a cada dois anos, pode manter algumas concessionárias automotivas ativas no seu perímetro urbano. Enquanto isso, em cidades do interior do Brasil com população semelhante, talvez apenas 50% dos domicílios possuem um carro e, mesmo assim, em média com oito anos de uso.

Um comerciante americano que vende 160 carros novos por mês tem um poder de fogo diferente de um lojista brasileiro que vende 16 carros usados (e na maioria das vezes bem usados) no mesmo período de tempo. E esse poder de fogo se reflete no valor e na frequência dos anúncios, ou seja, no tamanho da verba publicitária. Esse exemplo se desdobra para todos os outros bens de consumo duráveis ou não que cidades de 50 mil habitantes consomem e, portanto, para todo o comércio que abastece essas localidades.

A questão da falta de “massa crítica” também se estende ao tamanho do grupo de consumidores de jornalismo dentro da comunidade. Com o nosso baixo grau de educação e baixo poder aquisitivo, o interesse por serviços jornalísticos também é inexpressivo. Os índices de leitura são pequenos, assim como a penetração da internet nesses locais. As rádios não têm nenhuma disposição em manter equipes de jornalismo, pois custa caro e não dá audiência. Tocar música ou fazer programas evangélicos é mais barato e atrai mais público. Sobram as TVs abertas, que por motivos técnicos não podem fazer esse microjornalismo. Sua cobertura é regional. Muitas vezes, uma geradora de TV atinge mais de 100 municípios.

Ou seja, não temos audiência em escala. Portanto, não há anunciantes para investir nos produtos noticiosos locais.

Outros fatores contribuem com a grande dificuldade de estabelecer veículos noticiosos de qualidade em cidades do interior brasileiro. Por exemplo, a manutenção de mão de obra jornalística. Um veículo pequeno, em uma comunidade pequena, não consegue pagar um jornalista em período integral. Para sobreviver, esse profissional fatalmente precisa de outro emprego ou do chamado “bico”. Normalmente, esse tipo de profissional trabalha também na prefeitura ou em algum órgão público. Nessas condições, é impossível haver independência.

Conflito de interesses

Também muito comum no interior são as colunas sociais. Todas elas são pagas. As pessoas de posses da cidade, normalmente os empresários locais, contratam o jornalista para cobrir as festas de aniversário ou casamento de seus familiares. Pagam por essa cobertura e pelo espaço no veículo. Como ter independência para fazer uma crítica a uma empresa da cidade se o empresário é quem paga diretamente o salário do jornalista?

Em municípios afastados dos centros urbanos, a dependência de recursos públicos é muito grande. Em geral, o maior empregador de uma cidade pequena é a prefeitura e o maior provedor de publicidade paga também. No interior do Brasil, um jornalista independente que critique o poder público (ou privado) certamente ficará à míngua em relação às verbas publicitárias oficiais. E, para piorar, muitas vezes corre risco quanto à integridade física.

Como sair desse círculo vicioso da baixa audiência que gera receitas publicitárias pífias e inviabiliza o jornalismo local nas pequenas e médias cidades do interior do país? As respostas não são simples. Se em 500 anos de Brasil o jornalismo comunitário de boa qualidade não surgiu, deve ser porque realmente é de difícil implantação. No entanto, temos a obrigação de encontrar caminhos para mudar essa realidade. Não seremos uma democracia plena se a maioria dos cidadãos brasileiros não tiver acesso a informações e jornalismo local independente e de qualidade.

Vejo três mudanças importantes para acreditar que agora será possível resolver esse impasse. A primeira é a consciência da sociedade brasileira de que a questão precisa ser enfrentada. ONGs, fundações e grandes empresas dão os primeiros passos nesse sentido. A segunda é a melhora do poder aquisitivo da população e a ascensão e inserção das classes mais baixas nas cadeias de consumo. E, por fim, a tecnologia, cada dia mais acessível no custo e no manuseio.

Mas vamos discutir um pouco os rumos para reverter esse quadro. Temos uma conta que não fecha. Altos custos, má qualidade, baixa audiência e receitas pequenas. Como resolver essa equação de tantas variáveis?

Na minha visão, a solução passa pela formação de redes de conteúdo. O que são elas? Um grupo de provedores de conteúdo (digital, impresso, áudio ou vídeo) que se unem para juntos obter sinergia, qualidade, redução de custo e aumento de receita.

Para que esse grupo (rede) se organize, além do interesse comum, é necessária a figura de um líder que, no jargão da mídia eletrônica, chama-se o cabeça de rede. Ele proveria tecnologia, padrão gráfico, conteúdo não local e, principalmente, a venda de publicidade para anunciantes não locais (macrorregionais ou nacionais). No caso de um site, por exemplo, o cabeça de rede forneceria a marca, comum a todos e se possível com um complemento com o nome da cidade. Também seria responsável pelo layout do site e pelas ferramentas de navegabilidade. Os espaços publicitários seriam padronizados, os links patrocinados locais idem. O aplicativo para celular estaria disponível a todos, assim como eventuais formas de cobrança de conteúdo.

No que tange às receitas, o cabeça de rede venderia publicidade não local para todos, possibilitando a anunciantes nacionais terem sua mensagem espalhada por milhares de municípios, com a certeza da veiculação. Também proveria aos afiliados cursos sobre técnicas de venda e esclarecimentos sobre como vender e cobrar pela publicidade, pelos links patrocinados e pelos patrocínios de seções.

Com relação ao conteúdo, o cabeça de rede proveria um bom manual de redação e estilo e treinamento para garantir qualidade e padronização nos textos e infográficos. O conteúdo local seriam as notícias do dia a dia da cidade, se possível com alguma análise, e muita informação fornecida por pessoas da própria comunidade. Todas as pessoas interessantes da localidade deveriam ter um blog no site, e o jornalismo feito pelos cidadãos seria fortemente incentivado. Hoje, com um aparelho celular, todo mundo tem condição de produzir uma minirreportagem, postando uma foto e uma descrição do ocorrido. Todo motorista de táxi ou motoboy, por exemplo, podem se tornar repórteres. O cabeça de rede dá a orientação jurídica necessária para que o afiliado não corra riscos trabalhistas ou cíveis com os colaboradores.

Modelo para gerar receita

Muitos argumentam que a qualidade desse tipo de material é duvidosa. Aí entra o papel do editor, nesse caso o próprio pequeno empresário que dirige o site, que deve avaliar a credibilidade e qualidade do que vai ser publicado. O conteúdo não local seria fornecido pelo cabeça de rede. Não apenas aquelas matérias transmitidas nos telejornais das grandes redes, mas haveria um foco nas notícias com impacto na região, como informações sobre o agronegócio ou sobre o que está fazendo o deputado estadual e o federal que representam aquela localidade.

A mesma fórmula pode ser adaptada para a mídia impressa, para o rádio ou para TVs comunitárias. Uma pequena cidade não precisa ter um jornal diário. Um semanário é suficiente. Com um projeto gráfico e editorial padronizado, além de conteúdo e publicidade local e não local. Os editores administrariam também um site no modelo apresentado acima. Idem para rádios e TVs comunitárias. Os programas jornalísticos teriam um padrão, vinhetas e formatos testados e com resultados comprovados em vários lugares.

Essa é apenas uma ideia. Ela precisa ser desenvolvida e lapidada. A Rede Globo, de certa maneira, já desenvolveu algo semelhante há muitos anos. Só que pelas características do meio, o conteúdo não é local, mas sim regional. A experiência da Globo também nos indica que quanto mais receita a rede consegue prover para seus afiliados, mais condições de exigir um padrão de qualidade e jornalismo independente.

Outras experiências mostraram que redes que faturam pouco e, portanto, repassam pouco para seus afiliados podem exigir muito pouco deles. Assim, esse tipo de proposta exige a adesão de empresários da comunicação que realmente tenham a preocupação de fazer um jornalismo decente em suas cidades. Também devem acreditar que a participação em uma rede pode viabilizar a própria empresa e melhorar a vida dos cidadãos de sua cidade. Empresários de comunicação que investem em jornalismo de qualidade fazem um bom negócio.

******

Flávio Pestana é diretor-geral da agência de comunicação CDN. Entre outras funções, atuou como executivo-chefe dos jornais Gazeta Mercantil e Valor Econômico e diretor-superintendente de jornais e revistas do Grupo Folha.